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Decifra-me ou te devoro

Atualizado: 1 de abr. de 2023

O que esperar de um livro que começa por uma vírgula e termina com dois pontos ? Uma vírgula significa que existe algo que a antecede e que não está dito e o não dito é importantíssimo na literatura da Clarice, cheia de silêncios.


E são nesses silêncios, nesses vazios que iremos penetrar ao longo das páginas acompanhando Lóri.


Lóri, epíteto de Loreley. Aquela que no poema de Heine era uma linda e jovem sereia que encantava os homens que navegavam pelo Rio Reno com seu cântico sedutor, fazendo-os se afogarem em águas turbulentas.


A Loreley de Clarice não é uma sereia, mas também tem mistério, uma esfinge. "decifra-me ou te devoro", era o que ela dizia sem dizer.


Sobretudo é uma mulher solteira, professora primária, que pula de relacionamento em relacionamento, todos sem nenhuma profundidade e entrega. Lóri evita esse contato mais íntimo com o mundo e com o outro por que assim acredita evitar o sofrimento.


Ela conhece e se apaixona por Ulisses,  um professor universitário de filosofia. Ulisses sente atração e desejo por Lóri, mas só queria ter qualquer tipo de envolvimento com ela quando a mesma estivesse pronta para amar sem ressalvas, sem pudor, consciente de si mesma.


O livro divide-se em duas partes. A primeira chama -se "A Origem da Primavera ou a Morte Necessária em Pleno Dia". Achei o título bem apropriado. Lóri precisa aprender a morrer para desabrochar, para "primaverar".


A segunda parte recebe o título de "Luminescência ". Luminescência é um conceito físico que representa a emissão de luz por uma substância quando submetida a algum tipo de estímulo. É a emissão de energia luminosa por um corpo. Lóri, estimulada por Ulisses, renascida, conhecendo-se a si mesma seria capaz de irradiar essa luz para o mundo, mas tem medo. Prefere viver no raso, no "faz de conta".


"(...) faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade (...) faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta. "

Lóri quer garantias para viver, mas quem as tem?


O que acompanhamos daqui para frente é esse renascimento de Lóri. Sua entrega ao amor, à vida. Viver é mais que apenas existir. Viver é dor muitas vezes, mas não viver dói muito mais.


Esses dias li uma frase de Dostoiévski em Memórias do Subsolo que diz: "É melhor uma felicidade barata ou um sofrimento elevado?"


Lóri é uma mulher no subsolo de si mesma e trilhará um caminho difícil, mas muito bonito até chegar à superfície.


Uma das partes que mais me tocou tanto no livro quanto no filme (assisti alugando pelo YouTube) foi a passagem em que Lóri toma um banho de mar. É como se finalmente ela entrasse na existência, mergulhando de cabeça em si própria para emergir plena e livre.


Outra passagem simbólica que reflete essa transformação de Lóri é a maquiagem carregada que ela utilizava. "Uma persona", uma máscara como os atores no teatro grego utilizavam para representar os seus papéis. Lóri também estava encenando no palco da vida.


" Então, sem entender o que fazia – só o entendeu depois – pintou demais os olhos e demais a boca até que seu rosto branco de pó parecia uma máscara: ela estava pondo sobre si mesma alguém outro: esse alguém era fantasticamente desinibido, era vaidoso, tinha orgulho de si mesmo. Esse alguém era exatamente o que ela não era."

Mas depois de se sentir confiante por ter entrado sozinha no mar, Lóri retira a pintura do rosto e vai ao encontro de Ulisses com sua face nua, marcada pela dor de viver, mas real.


Essa viagem com Lóri não é tão tranquila quanto possa parecer, não a subestime. Ela é curta, porém extremamente densa, reflexiva, lenta.


Não foi uma leitura fácil para mim. Tive dificuldades em penetrar nos dramas de Lóri e se ler Clarice é mais sentir que entender,  essa conexão com os conflitos da personagem no meu ponto de vista é importante.


Mas deu certo. Chegamos ao fim e "primaveramos".


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©2023 por A leitora clássica 

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