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Um pequeno herói (Dostoiévski)

Foto do escritor: A leitora ClássicaA leitora Clássica

A grande vantagem de ler os livros de um determinado autor em ordem cronológica é podermos observar alguns temas e estilos que irão se apresentando de forma recorrente no conjunto de sua obra. No caso de Dostoiévski,  a escrita memorialista vem ganhando destaque desde os suas novelas iniciais como Noites Brancas, Niétotchka Niezvânova e presente também aqui em Um pequeno herói.


Nessa novela, assim como na anterior (Niétotchka Niezvânova), Dostoiévski vai explorar o tema da descoberta da sexualidade infantil através das memórias de um narrador já adulto.


Já falei sobre esse aspecto da sexualidade na infância, onde Dostoiévski antecipa algumas questões que serão trabalhadas por Freud muitos anos mais tarde, na resenha de Niétotchka Niezvânova  que se encontra aqui.


Em Um pequeno herói, o narrador vai nos contar um episódio de sua infância ocorrido quando ele tinha em torno de 11 anos de idade e que marcaria sua passagem para a puberdade.



Tudo começa quando ele vai passar alguns dias em uma propriedade de verão de um parente rico onde está ocorrendo uma festa que "começara com o propósito de não acabar nunca."


Na ocasião, membros da sociedade abastada de Moscou estavam reunidos na propriedade para os jogos de entretenimento.


Diferente das novelas anteriores onde a ambientação, geralmente um espaço urbano e claustrofóbico, refletia o estado emocional do narrador com seus aspectos sombrios, Um pequeno herói é uma novela que se passa no campo. É diurna, clara, e essa ambientação contrasta com o estado interior do narrador que sente-se confuso e perturbado diante das damas presentes por não compreender direito as sensações que se apossavam do seu ser naquele período.


" (...) Mas que coisa estranha! Já era dominado por uma sensação incompreensível a mim mesmo; alguma coisa já me sussurrava no coração, algo que ele até então ignorara e lhe era desconhecido."

Inicialmente ele fica fascinado por uma mulher loira a qual ele denominava de "minha beldade". Essa mulher, percebendo o olhar desejoso do menino, começa a tirar brincadeiras com ele, queria colocá-lo no colo, beliscava-o,  deixando-o ainda mais inquieto e constrangido.


Esses "privilégios infantis" os deixavam extremamente amedrotado e envergonhado , pois aquelas mulheres se permitiam certas "liberdades" com ele sem suspeitar que em seu íntimo ocorria uma transformação silenciosa, mas feroz.


Essa psicologia da criança que não entende o que sente, que está descobrindo o amor e o desejo, é magistralmente explorada por Dostoiévski.


Mas por quem o narrador irá se apaixonar de verdade não será pela sua loira zombeteira, mas por sua amiga, Madame M*, uma morena de fisionomia taciturna,  reservada e olhos tristes e melancólicos. Sua beleza é descrita como algo que vai além da aparência externa. Havia algo mais, "algo de especial que a distinguia em uma multidão de mulheres bonitas".


" (...) havia algo em seu rosto que atraía de imediato e irresistivelmente toda simpatia  ou, melhor dizendo, que despertava uma simpatia sublime e nobre em quem a conhecia. Há rostos assim afortunados. Perto dela todo mundo de algum modo se tornava melhor, como que mais livre, mais caloroso"

Podemos perceber que a descrição feita da beleza de Madame M* não provém da mente infantil, mas do adulto que rememora. Há essa mistura,  como é comum em narrativas de memórias, da voz adulta que conta o fato com da voz infantil de quem vivenciou de fato.


Em outra passagem, o narrador vai dizer que


"É verdade que na época não entendia isso tudo do mesmo modo que percebo agora."

É como se através do ato de rememoração ocorresse uma ressignificação dos acontecimentos e sentimentos vividos. O mesmo percebemos em Niétotchka Niezvânova quando Ana narra as lembranças da mãe.


O fato é que o menino descobre o sentimento amoroso (que vai muito além do desejo físico que sentiu pela loira) através de Madame M* . Ela era uma mulher casada com um homem extremamente ciumento "não por amor a ela, mas por amor próprio" , que a tratava mal, e por quem Madame M* sentia medo e intimidação na sua presença.


A maneira como o narrador descreve o marido de Madame M* é uma crítica à um tipo específico da sociedade russa que Dostoiévski chamou de "homens inteligentes".  Esses homens que engordavam a custa alheia, que não faziam absolutamente nada, via a todas as pessoas como tolas e que podiam se valer delas em caso de necessidade, para explorá-las. Não admitiam qualquer defeito em si mesmos e como em uma espécie de um narcisismo generalizado, em primeiro lugar vinha sempre eles próprios. Essas eram as pessoas "bem sucedidas " da época.


"Nunca são capazes de um exame interior consciente,  de uma autoavaliação nobre: para certas coisas são rudes demais. Acima de tudo e em primeiro plano está a sua própria e valiosa pessoa, seu Moloch e Baal, seu esplêndido eu. Toda a natureza e o mundo inteiro não são para eles senão um espelho esplêndido, criado para que esse ídolo possa incessantemente admirar a si mesmo e não ver nada nem ninguém além de si"

Era a essa categoria de "homens inteligentes " que pertencia o marido de Madame M*.


O menino que sempre observava atentamente seu objeto amoroso percebia que ela era uma mulher que escondia uma grande angústia. Seu rosto revelava uma aflição  profunda e seus olhos continham sempre lágrimas silenciosas.


Mas Madame M* tinha um motivo além do casamento mal sucedido. Ela escondia um segredo que viria a ser descoberto pelo narrador. Ela traía o marido. Esse dilema da mulher que trai também é ressignificado através das lembranças do narrador.


"E, no entanto, disso não há dúvida, a súbita revelação de seu segredo teria sido um golpe terrível e fulminante em sua vida. (...) O que aconteceria ? Que execução poderia ser pior do que aquela que a esperava ? Ela andava entre seus futuros juízes. Em um minuto seus rostos sorridentes e lisonjeiros se tornariam ameaçadores e implacáveis. Leria escárnio, fúria, e um desprezo glacial nos rostos, e depois cairia uma noite eterna e sem aurora em sua vida...(...) Mas no que quer que consistisse seu segredo, muito fora expiado, se é que algo precisava ser expiado, por aqueles momentos de aflição de que fui testemunha e que jamais esquecerei."

A narrativa chega ao seu ponto central quando a loira,  em uma discussão com o marido de Madame M*, expõe perante todos que o menino estava perdidamente apaixonado por sua esposa e que tinha como provar.


O narrador enfurecido enfrenta a sua loira tirana com um discurso inflamado, sendo ainda mais motivo de risos e divertimentos para os presentes.


Ele sentiu-se violentado, seu segredo sagrado foi profanado publicamente e, para usar um termo bakhtiniano, houve uma carnavalização da sua intimidade.


Trancado em seu quarto o menino percebe que todos se preparavam para um passeio. Cavalos e carruagens estavam à postos na entrada da casa. Ele desce correndo, mas seu pônei havia adoecido, não sobrando lugar para que ele pudesse ir.


O anfitrião da casa oferece a um outro convidado um cavalo selvagem que todos temiam montar.  O cavaleiro recusa a oferta e a loira , em sua insolência desmedida, desafia o narrador a montar no bicho indomável.


O menino sente-se mais uma vez ridicularizado e para vingar-se de sua algoz, sobe em cima do cavalo que sai em disparada.


Por ter montado no cavalo selvagem, o menino é recebido na entrada da casa como herói. Ele conquistou seu espaço no mundo dos homens. Agora era respeitado e aceito em seu meio.


O desfecho da novela, assim como em Niétotchka Niezvânova, é ocasionado pela presença de uma carta.


Essa carta poderia revelar o segredo e o motivo da amargura de Madame M* e,  em um segundo ato heroico, isso é impedido pelo narrador que como recompensa tem o fim da sua infância selada com um beijo.


Apesar de abordar alguns temas pesados como a exposição e as humilhações sofridas pela criança em ambientes adultos, é uma obra doce e delicada que disseca a alma de um menino, descrevendo suas primeiras experiências amorosas e estéticas.

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2 Comments

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patriciamilanis
patriciamilanis
Mar 21, 2024

Parabéns pela resenha Naty 👏👏

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Obrigada amiga

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