O #lendocontonaquinta de hoje traz o conto "Um coração fraco" , do escritor russo Fiódor Dostoiévski.
Neste conto, publicado em 1848 na revista Anais da Pátria, acompanharemos a história de dois grandes amigos e colegas de trabalho, Arkadi Ivánovitch Nefediévitch e Vássia Chumkóv.
O autor fará uso dos personagens para abordar temas que são recorrentes em seu projeto artístico: a figura do sonhador, explorado em outros textos como nas novelas A senhoria e Noites Brancas e a loucura que foi tratada na novela O duplo e que já tem resenha aqui no blog.
Vássia é um rapaz de bom coração, querido por todos que o conhecem, esforçado, trabalha em uma repartição fazendo cópias de textos para o governo e que não tem muito jeito com as mulheres. Ele e seu amigo Arkadi têm algo em comum : ambos são excessivamente sentimentais, apesar de Arkadi não ser tão sonhador quanto Vássia.
Mas Chumkóv possui outra característica, uma deficiência física, é manco. O seu andar, apesar de manco, suscitava sempre muita dignidade e respeito.
É véspera de ano novo. Vássia chega em casa com uma notícia importante para compartilhar com o amigo: ele vai casar.
Arkadi fica surpreso com essa notícia inesperada , questiona o amigo sobre como eles iriam viver, se mostra mais racional que Vássia, que por estar apaixonado, não pensava nessas questões.
Mas bastou Arkadi conhecer Lízanka, a noiva , para que todas as dúvidas fossem dissipadas. Sim, Vássia ia casar com Lízanka, Arkadi moraria com eles, seria o padrinho de todos os filhos do casal e já começaria a procurar um apartamento que comportasse a todos.
Lízanka, que é o diminutivo de Liza, é uma moça pobre que mora com a mãe e um irmão pequeno. Ela tinha um noivo, mas ele foi mandado a serviço para outro lugar e retornou casado. A moça ficou inconsolável e encontrou em Vássia um apoio importante que fez com que ela acabasse se apaixonando também por ele.
"Teremos uma vida pobre, é claro, mas seremos felizes; não é uma ilusão, nossa felicidade não é coisa de livro: seremos felizes de verdade !"
Uma questão central no conto é o fato de Vássia ter que terminar um trabalho em um curto prazo e ainda não ter finalizado. Arkadi se preocupa com isso, interpela o amigo sobre o trabalho e o mesmo diz sempre que está tudo sob controle e que irá terminar no prazo.
Com o passar dos dias Vássia foi mudando, ficando introspectivo, não olhava o amigo nos olhos e isso foi deixando Arkadi nervoso e preocupado.
"Não é nada, apenas fiquei muito triste, Arkadi. Eu mesmo não posso dizer a razão."
Mas ele diz. Revela ao amigo que durante as três semanas anteriores não havia feito nada do trabalho para o qual fora designado e ao invés de um caderno como havia dito para Arkadi, na verdade, faltavam seis.
" Eu mesmo não sei o que me aconteceu! Parece que estou saindo de um sonho. Perdi três semanas inteiras à toa. Eu... ia até a casa dela... Meu coração doía, eu sofri pela.... incerteza... e não conseguia trabalhar. Nem pensava nisso. Só agora que a felicidade está ao meu alcance é que voltei a mim."
E quando voltou a si, Vássia se sentiu fracassado, aniquilado, ingrato para com o amigo Arkadi que o amava tanto e queria seu bem e com seu chefe e benfeitor por não ter cumprido o trabalho que ele lhe confiou.
Seu coração fraco e apaixonado não o permitiu ver a realidade à sua volta e Vássia passou a viver do sonho de casar e viver eternamente feliz com Liza. Uma felicidade que não julgava merecer. Se sentia indigno dessa felicidade por ter vindo da classe baixa, por ter uma deficiência física, por ser quem é.
Arkadi vai fazer a seguinte análise do amigo :
"Você é bom e muito carinhoso, mas é fraco, imperdoavelmente fraco. (...) Além disso, você é um sonhador, e isso também não é bom: pode até perder o juízo, irmão. (...) você gostaria que não houvesse um homem infeliz no dia do seu casamento (...) pois se você está feliz, quer que absolutamente todos fiquem felizes de uma vez. Para você, ser feliz sozinho é doloroso, difícil. Por isso você quer com todas as forças ser digno dessa felicidade."
Esse sentimento de ser indigno da felicidade iminente era tão profundo em Chumkóv que o fato de ter fracassado no trabalho e a culpa de decepcionar quem o estimava foram apenas pretextos para sua mente entrar em um subterrâneo que se tornou impossível de sair.
Bakhtin, na obra Problemas da obra de Dostoiévski, nos dirá que os personagens dostoiéviskianos estão em constate diálogo com sua autoconsciência, geralmente uma autoconsciência atormentada.
E foi essa luta árdua e dolorida travada com sua autoconsciência que acabou por fazer Vássia enlouquecer.
Não pôde suportar o peso da própria felicidade.
Esse conto integra essa coletânea chamada Contos reunidos que sai pela Editora 34 e que possui as narrativas curtas do autor publicadas entre os anos de 1848 a 1880.
Parabéns pela resenha 👏
Um personagem atormentado, no importa se pela tristeza que o atinge ou pela felicidade que antes desconhecia. Uma resenha digna de um convite para uma festa do ato de pensar, agir e ser!