Um bonde chamado desejo (Tennesse Williams)

"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada."

Esse trecho foi dito pela protagonista de Água viva de Clarice Lispector,  mas poderia ter sido pronunciado por Blanche De Budois, a mulher cujo drama pessoal agravado pelo desejo de uma transfiguração da realidade, acompanhamos ao longo das páginas de Um bonde chamado desejo, peça de 1947 do dramaturgo norte - americano Tennessee Williams que revelou para o mundo o talento de Marlon Brando e que é sucesso até os dias de hoje no teatro, no cinema e na literatura.

Essa necessidade de Blanche de transfigurar a realidade será revelada em um momento crucial da peça quando ela dirá:

"É isso que eu tento dar para as pessoas. Eu transfiguro as coisas. Eu não digo a verdade. Eu digo o que deveria ser a verdade. E, se isso é pecado, que eu seja maldita por isso! "

Blanche não queria a realidade onde ela, criada em uma propriedade de nome Belle Reve,  ou seja, Bons sonhos, educada aos moldes franceses, encontra-se desamparada, sem dinheiro, sem os seus antigos tempos de glória,  dependendo sempre "da gentileza de estranhos".

Não, esse realismo não serve à Blanche. Ela quer a magia, a fantasia, e para isso ela mente, manipula, seduz , corrompe e se sexualiza.

Blanche inicialmente nos choca, irrita, incomoda.

Mas essa busca por uma "verdade inventada " tem origem na dor. Ela via o mundo através de olhos doentes pela perda traumática de seu grande amor , uma perda dupla, para outro homem e para a morte.

Os acontecimentos subsequentes levam a vida de Blanche para a mais completa degradação . A perda da propriedade da família, a entrega permissiva de seu corpo para os mais variados homens em busca de preencher um vazio profundo, a demissão da função de professora de literatura por seu envolvimento com um aluno adolescente, a desmoralização pública e a sua expulsão da cidade de onde vivia.

É nesse ponto da vida de Blanche que a peça se inicia quando , sem ter para onde ir, ela vai procurar abrigo na casa da irmã Stella que mora em Nova Orleans.

Stella mora com o marido, Stanley Kowalski, em um bairro pobre de Nova Orleans, em uma rua chamada Campos Elísios. Para chegar até lá, Blanche precisou pegar um bonde chamado Desejo.

"Me disseram pra pegar um bonde chamado Desejo, depois fazer a baldeação pra outro chamado Cemitérios, cruzar seis quarteirões e aí eu desceria - nos Campos Elísios! "

Stella, assim como Blanche, é uma mulher de formação elevada, modos educados, o que contrasta com os do marido, um homem rude, agressivo, amante do jogo, da bebida e de mulheres as quais mede com seu olhar em categorias sexuais. Gosta de exibir seu físico e se gabar de seu porte atlético, mantendo a imagem de um exímio reprodutor.

Aliás,  isso é o que prende Stella a esse homem. É o desejo erótico e o sexo que faz com que Stella tudo aceite e perdoe.

Blache fica perplexa com o local onde a irmã vive. Um cortiço de dois cômodos divididos apenas por uma cortina. A decadência do local deixa Blanche incrédula.

"Ah, eu não vou ser hipócrita, eu vou ser crítica, Nunca, nunca, nunca, nem nos meus piores sonhos eu poderia imaginar uma coisa dessas - Só Poe! Só Mister Edgar Allan Poe - poderia fazer jus a isso aqui!"

O contraste entre Blanche e o local era imenso, pois mesmo pobre, Blanche mantinha um certo requinte.

Mas a incompatibilidade ainda maior se dará entre Blanche e Stanley que protagonizarão o conflito central da peça.

A briga inicia porque Kowalski quer que Blanche explique para onde foi o dinheiro da venda da propriedade da família da esposa, alegando que de acordo com o Código Napoleônico, um código civil em vigor desde 1804, garantia que todos os bens da esposa pertenciam também ao marido. Blanche, no entanto, não sabia explicar como acabou "perdendo " as terras de Belle Reve.

A relação entre eles é mesclada por provocações, olhares desafiadores,  sedução e agressividade.

Uma certa noite, Stanley convida uns amigos para um jogo de pôquer na sua casa. Nessa cena, Stanley bebe, se descontrola e bate na sua esposa grávida. A violência de Kowalski contra Stella causa um profundo espanto em Blanche que tenta convencer a irmã a abandonar o marido,  mas Stella, submissa e resignada, sempre acaba desculpando as atitudes de Stanley.

Segue o diálogo das duas irmãs sobre a situação:

"(Stella): Mas tem certas coisas que acontecem entre um homem e uma mulher no escuro - que fazem o resto do mundo  - não ter a menor importância.

(Blanche) : Você está falando é de um desejo bárbaro  - só - Desejo!  - o nome desse bonde, dessa carroça que fica gemendo pelo bairro, subindo uma velha rua estreita e descendo outra...

(Stella): Você nunca pegou esse bonde?

(Blanche): Foi ele que me trouxe aqui - Onde eu não sou bem - vinda e onde eu tenho vergonha de estar..."

Nesse mesmo momento do jogo de pôquer, Blanche conhece Mitch, amigo do casal anfitrião. Mitch é um rapaz solitário que vive para cuidar da mãe do doente e também anseia por encontrar uma companhia.

Ele e  Blanche iniciam um romance. Blanche se interessa por ele por sua aparente fragilidade e sensibilidade.  Ela monta uma personagem puritana e casta para seduzir Mitch. Não permite que ele a toque, fala que não bebe apesar de ter problemas com o álcool e diz que tem uns ideais "fora de moda". Ela acredita que se ele conhecesse a sua história a abandonaria. A marca do abandono é uma ferida aberta no coração de Blanche.

Ela revela à irmã que

" - ele pensa que eu sou  - casta e correta, você sabe. Quero iludi-lo o bastante pra fazer com que ele  - me queira..."

Em uma das conversas entre Blanche e Stella sobre Mitch, Blanche levantará uma pauta importante e que aflige à nós mulheres até hoje , o etarismo.  Para ela, não sem razão, o valor social da mulher está relacionado à sua idade e beleza. As  mulheres precisam ser sedutoras, delicadas, jovens e atraentes. Ela tem uma dificuldade em assumir a própria idade por isso e não se deixa ser vista à luz do dia.

Ela cobre a luz do quarto com uma lanterninha de papel para causar um efeito de penumbra e evitar a luz direta em seu rosto, o que revelaria a sua pele madura.

Blanche sabe que seu tempo está se esgotando para encontrar um pretendente e aposta todas as fichas em Mitch.

Porém,  Stanley que desde a sua chegada aos Campos Elísios vêm investigando o seu passado, descobre o real motivo dela ter saído da antiga cidade e revela tudo para Mitch que rompe com ela.

Mitch, mesmo não querendo mais nada com Blanche, tenta fazer com que ela se entregue sexualmente à ele e quando ela pede para que ele mantenha a proposta de casamento, Mitch, com toda escrotice  e crueldade diz:

"Você não é limpa o bastante para entrar na casa da minha mãe. "

É nesse momento que Blanche, que possue uma personalidade neurastênica, rompe completamente com o real. Ela surta e perde a consciência de si. Acredita estar se arrumando para um cruzeiro no Caribe com um de seus antigos fãs.

Nesse momento, chega Stanley que tem retornado do hospital onde Stella está dando à luz e encontra Blanche sozinha já em franco delírio.

Stanley, então, comete um ato brutal e criminoso. Mesmo sabendo que Blanche estava fora de si, deslocada da realidade, ele a violenta sexualmente.

Blanche conta à Stella sobre o estupro que opta por não acreditar na irmã. Blanche se afunda cada vez mais na sua ilusão e seu estado mental vai se agravando.

O fim de Blanche é deprimente. Internada pela irmã em um sanatório,  sendo guiada pelas mãos de um médico desconhecido.

O drama de Blanche nos faz questionar sobre a moralidade. Blanche, acusada e julgada por seu comportamento promíscuo e imoral , é vencida por um homem que violenta a esposa grávida e estupra a cunhada em estado de confusão mental.

Stanley sai vitorioso dessa disputa com seu casamento preservado, seu filho e os amigos de sempre na roda de pôquer.

Mas quem foi julgado com maior rigor? Blanche ou Stanley ? Sou tentada a crer que a vitória sempre está do lado dos hipócritas.

Podemos até cair na precipitação de julgar Blanche, mas como ela mesma diz:

"A crueldade premeditada não é perdoável. Na minha opinião, essa é a única coisa imperdoável no mundo, e é a única da qual nunca, nunca vão poder me acusar."