top of page

Três mortes (Tolstói)

Foto do escritor: A leitora ClássicaA leitora Clássica

Ontem tivemos aqui no blog a resenha do livro A morte de Ivan Ilitch de Tolstói.  Uma obra que nos faz refletir sobre a vida e sobre a morte e traz o tema da finitude através da perspectiva de uma personagem da alta sociedade, um juiz, que passou toda a existência procurando viver de acordo com a opinião pública, valorizando o que era efêmero (poder, status, bens) sem criar laços afetivos verdadeiros com as pessoas. Seu pré -óbito se deu de forma solitária e desolada.


Para Ivan Ilitch a morte não era algo natural. O seu desespero ao percerber-se mortal foi enorme e mais ainda quando se deu conta que não haveria mais tempo para fazer diferente, que só havia uma vida e que esta a escapava sem que ele pudesse fazer algo para evitar.


Ele chegou a ter raiva da ignorância dos que estavam vivos e que, como ele, não percebiam, nem sequer suspeitavam, que mais cedo ou mais tarde teriam o mesmo destino e viviam alheias a isso, gastando a vida como se fossem imortais.


A única pessoa que via seu pré-óbito com humanidade e o seu óbito como algo natural e que aconteceria à todos era seu criado, um mujique, um homem simples, que veio do campo, criado longe da mediocridade e da hipocrisia da capital e que, por essa relação íntima com a natureza, também compreendia melhor a morte.


Bem anterior à A morte de Ivan Ilitch que é de 1886, Tolstói já trazia em suas obras reflexões sobre a morte, tema recorrente em sua literatura, a exemplo do seu conto "Três mortes" que é objeto de resenha no #lendocontonaquinta de hoje.



Três mortes, publicado em 1858 e que integra juntamente com outros quatro contos a coletânea "O diabo e outras histórias", vai trazer um comparativo de três mortes que, de uma forma ou de outra, estão relacionadas entre si pelo fio condutor da narrativa, mas que são bastante diferentes, não apenas na forma como atravessam , mas como encaram esse processo:  a morte de uma Senhora nobre, de um mujique e de uma árvore.


A primeira morte é a da senhora burguesa Mária Dmítrievna. Mária é uma mulher rica,  altamente orgulhosa e arrogante. Ela está doente com um problema pulmonar que o conto nos leva a crer tratar-se de tuberculose.


No início do conto, Mária está em viagem com o marido, o médico e uma criada para o exterior , onde acredita que encontrará a cura para o seu mal.


Mária culpa o marido pelo agravamento de sua doença, acredita veementemente que ninguém se importa com seu sofrimento,  que pelo fato de estarem bem e com saúde , todo o resto era sem importância.


A ideia da morte a apavora e ela questiona Deus.


"Meu Deus! Por quê?  - dizia ela, e as lágrimas corriam ainda mais intensas. Rezou por muito tempo com ardor, mas no peito a mesma dor e opressão."

Aqui já percebemos um ponto que será central no conto : a crítica à igreja e ao cristianismo.


A fé de Mária, o seu cristianismo,  não dá conta de libertá-la do sofrimento emocional , do medo da morte , nem mesmo quando , no final do conto,  passa pelo rito cristão da unção dos enfermos. O que sustentava Mária, segundo Tolstói era, na verdade,  um falso cristianismo.


Assim como Ivan Ilitch que ao receber a comunhão e o sacramento da confissão percebe um alívio físico momentâneo, mas no seu interior continuavam a mesma dúvida e desespero.


A crise de fé do autor e a crítica à igreja cristã , mais explorada em seu livro "Uma confissão " de 1882 , levou-o a ser excomungado pela Igreja Ortodoxa em 1901.


Mas retornemos ao conto. Eles fazem uma parada em uma estação e o marido tenta convencê-la a voltar para casa, pois o médico acredita que ela não suportará e poderá vir à óbito em viagem e assim eles retornam.


Quando voltamos à história de Mária, ela já se encontra em sua mansão, cercada pela família (mãe,  marido, uma prima e seus filhos brincando no pátio), por seus criados e pelo Padre, figuras que representam a sua condição social privilegiada.


Em seu leito de morte, seus familiares a convencem a receber o sacerdote no quarto para o rito da unção dos enfermos. Mária aceita e afirma para a prima que não precisa prepará-la para a morte, pois ela por ser cristã entendia tudo.


Mas , mais uma vez, sua fé se mostra frágil. Ela continua a condenar e censurar o marido por sua doença, não aceita ver os filhos, diz que ninguém a escuta como deveria e a morte continua sendo abominável para ela.


Ao receber o sacerdote, assim como Ivan Ilitch,  ela sente uma esperança na cura, mas falece naquela mesma noite em profunda agonia.


Até o fim, o seu processo foi doloroso por não aceitar a finitude da vida como algo natural. Seu sepultamento foi cercado de pompa e formalidades (bem como o do nosso amigo Ivan), com uma lindo jazigo de pedra erguido sobre a sua sepultura, mas também com muita hipocrisia. O sacristão lia um salmo de Davi "sem entender o que dizia, e suas palavras ecoavam estranhas pela sala e morriam" .



A segunda morte é a do mujique Fiódor  Khviédor. Um homem simples, trabalhador, que se encontra em uma isbá na estação onde a senhora rica fez uma pausa com o marido.


Ele sofria do seu mesmo mal, a tuberculose, e esperava a morte em cima do forno, na cozinha da isbá dos cocheiros.


Fiódor possuía umas botas novas e o jovem cocheiro que conduzia a senhora nobre e que se chamava Serioga, queria que o doente as desse para ele, já que as suas estavam bastante desgastadas.


Fiódor entrega suas botas à Serioga em troca de uma campa , pois o fim da sua vida estava próximo. Serioga promete ao amigo que fará a lápide e sai com suas botas novas.


O mujique aceitava a morte com paciência e resignação, mesmo com fortes dores e tosses intensas, mesmo estando longe da sua familia que continuava no campo, mesmo sabendo que é um incômodo para os demais tê-lo ali, agonizando naquela cozinha.


Aceitava tanto a morte quanto a ideia de que a vida deveria continuar com mais naturalidade e por isso entrega suas botas para Serioga que deveria fazer melhor uso delas. Diferentemente de Mária,  a senhora nobre, que se ressentia com essa possibilidade.


Fiódor morreu sozinho, de forma tranquila, em cima do forno. Sem gritos e desesperos.


Foi enterrado em um cemitério público,  sem lápide, sem sacerdote, mas também sem artificialismo e fingimento.


A terceira e última morte é a da árvore. A morte da árvore representa que tanto o homem quanto a natureza compartilham o mesmo ciclo, do qual ninguém escapa.


Sua morte também se propõe a algo maior. Nem sua vida nem sua morte foram em vão.


Em vida, sua copa serviu de sombra e seus galhos de abrigo aos pássaros e com sua morte, a madeira de seu tronco pôde servir para marcar a existência de um bom homem nessa terra, pois com ela foi confeccionada a lápide do mujique Fiódor. 


Serigoga, cumprindo a promessa que fizera ao doente e pressionado pelos outros frequentadores da isbá que estavam de testemunha,  foi até o bosque com seu machado afim de conseguir um pedaço de tronco para confeccionar a lápide prometida.


Ao tombar, a vida no bosque brilhou renovada, as demais árvores pavoneavam seus galhos no espaço aberto, os raios solares penetraram por onde havia a copa da árvore morta.


A vida seguirá seu fluxo, inevitavelmente. Cabe a nós nos preparamos para uma transição tranquila, aceitando a finitude como parte da nossa natureza como bem fizeram a árvore e o cocheiro.


Para mim, essa foi a principal reflexão que ficou.









345 visualizações4 comentários

Posts recentes

Ver tudo

Proust contista

4 opmerkingen

Beoordeeld met 0 uit 5 sterren.
Nog geen beoordelingen

Voeg een beoordeling toe
joselanyafio
29 jun 2024

Excelente reflexão. Acabei de ler o conto três mortes e, ao final tive a oportunidade de ler suas reflexões. Amei. Você é demais, através do blog possibilita outras pessoas a desfrutar das suas leituras. É um espaço de troca e de muito aprendizado.

Like
Reageren op

Obrigada, amiga. Fico feliz que esse espaço seja útil para vocês. Para mim, é uma realização falar das minhas reflexões e impressões de leitura por aqui

Like

patriciamilanis
patriciamilanis
25 feb 2024

Fiquei muito interessada em ler este conto.

A morte de Ivan Ilitch está entre minhas próximas leituras...

Like
Reageren op

É maravilhoso amiga

Like
bottom of page