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Tatuagens, filosofia e devaneios

Atualizado: 26 de jan.

Nunca havia pensado em fazer tatuagens até pouco tempo atrás. Sempre me assombrou toda e qualquer coisa que se anunciasse como definitiva.


Até que ao finalizar a leitura da catedral de Proust, Em busca do tempo perdido, veio do fundo da alma um desejo de tatuar uma madeleine.


Essa vontade soou tão alto em mim que se tornou difícil de ignorar. Então refleti durante alguns meses e decidi e quando eu decido algo, não tem jeito, me determino até o fim.


Depois, através das leituras de filosofia, veio-me o desejo de tatuar a ampulheta e também pelo mesmo motivo, a frase Amor Fati.


Eu queria algo com um significado tão forte que mesmo que eu vivesse 100 anos, olhar para essas imagens não me trariam estranheza ou arrependimento e assim me encorajei.


Não são meros desenhos. São lembretes que se correlacionam. Vou explicar como.


Amor Fati



"Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor Fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!" (Nietzsche)


"Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati [amor ao destino]: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo - Todo idealismo é mendacidade ante o necessário -, mas amá-lo..." (Nietzsche)


Nietzsche vai dizer que devemos dizer sim à vida, ao acontecimento seja ele alegre ou doloroso. Não desejar nada de diferente nem pra frente nem pra trás . Não é suportar, mas amar o destino. Não é evitar o sofrimento. É mesmo sofrendo, amar. É um dizer sim integralmente a tudo por toda a eternidade. É amar a vida com uma atitude afirmativa e não reativa.


Ampulheta




"A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente — e você com ela, partícula de poeira!" (Nietzsche)


O desejo de tatuar a ampulheta veio-me como um lembrete de ter e ser presença no presente. O mal do ente humano é achar que temos tempo em abundância.  Isso o impede de ser mais amoroso, generoso, solidário e o faz deixar sempre para o dia seguinte tudo e qualquer coisa, inclusive os afetos. Mas isso é uma ilusão. Só temos o aqui e o agora. Assim como a areia da ampulheta se esvazia a cada segundo, a nossa existência também vai se findando.  Como disse Nietzsche,  somos partículas de poeira.


Madeleine de Proust



"E logo que reconheci o gosto do pedaço da madeleine mergulhado no chá que me dava minha tia (embora não soubesse ainda e devesse deixar para bem mais tarde a descoberta de por que essa lembrança me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta que dava para a rua, onde estava o quarto dela, veio como um cenário de teatro se colar ao pequeno pavilhão, que dava para o jardim, construído pela família nos fundos (o lanço truncado que era o único que recordara até então); e com a casa, a cidade, da manhã à noite e em todos os tempos, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas aonde eu ia correr, os caminhos por onde se passeava quando fazia bom tempo. E como nesse jogo em que os japoneses se divertem mergulhando numa bacia de porcelana cheia de água pequeninos pedaços de papel até então indistintos que, mal são mergulhados, se estiram, se contorcem, se colorem, se diferenciam, tornando-se flores, casas, pessoas consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do sr. Swann, e as ninfeias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá. " (Proust)


Essa é uma das passagens mais emblemáticas da literatura. O momento em que o narrador do Em busca do tempo perdido já adulto leva à boca um pedaço do bolinho francês que se chama madeleine molhado no chá e sente um prazer indescritível, uma sensação diferente de tudo que ele já havia experimentado. Ele não consegue de imediato definir essa emoção que brota no seu coração. Prova mais um pedaço do bolinho e as suas memórias do tempo de criança na casa da família em Combray surgem em minúcias como que renascidas. Esse episódio foi denominado de "memória involuntária ". Lembranças que não surgem através da nossa inteligência, mas ao acaso, escondida em algum objeto. Para Proust, essas são as nossas memórias mais valiosas.


Mas o que me fez tatuar a madeleine não foi esse trecho,  mas outro , contido em obra também diversa.


Em "Contra Saint -Beuve" , Proust vai explicar a memória involuntária  nesses termos:


" O que a inteligência nos apresenta sob o nome de passado, não o é. Em realidade, como ocorre com as almas dos mortos em certas lendas populares, cada hora de nossa vida, assim que finda, encarna-se e esconde-se nalgum objeto material. E lá permanece cativa, a menos que descubramos o objeto. Por meio dele, a reconhecemos, a conclamamos, e ela se liberta. O objeto em que ela se esconde - ou a sensação, pois todo objeto é, com relação a nós, sensação - pode nunca ser encontrado. E assim, há horas de nossas vidas  que não ressuscitarão jamais. "


A madeleine é um lembrete de que o tempo pode sim ser perdido e jamais reencontrado. Momentos que poderemos nunca mais revivê-los, esquecidos em algum sabor, cheiro, som ou objeto que não tivemos a sorte de encontrar. Resta-nos vivê-los intensamente no presente até os revestidos da mais aparente insignificância.


A madeleine no meu braço,  a frase de Nietzsche,  a ampulheta,  todos são símbolos de que é esse o instante que temos e nenhum outro e a esse instante eu digo sim, mesmo que me doa, por que ninguém sai ileso da vida a não ser que não viva, só exista.


Definitivamente, não é o meu caso.




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