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Sobre a estupidez (Robert Musil)

Foto do escritor: A leitora ClássicaA leitora Clássica

Tenho muito interesse nos escritores do início do século XX como Proust, Mann, Kafka e nessa lista (que não tem apenas estrangeiros) consta também o nome de Robert Musil e o seu "O homem sem qualidades", mas encarar um romance desse porte no meu contexto atual é totalmente inviável (estou imersa em A montanha mágica e por aqui a regra é clara, um calhamaço por vez) e por isso, resolvi começar por uma obra menor (em páginas porque é uma leitura densa, não se enganem), o seu ensaio "Sobre a estupidez" .


Acredito que esse ensaio é uma excelente porta de entrada à obra do autor até porque o tema da estupidez estará presente na sua obra prima. Seria o "homem sem qualidades" um estúpido?


Mas afinal, o que é a estupidez?


Quando pensamos, no senso comum, o que é uma pessoa estúpida, geralmente associamos à uma pessoa tola, pouco inteligente.


Robert Musil, nesse ensaio extraído da conferência proferida por ele em Viena em 2 e 17 de março de 1937, tentará nos fazer entender o que é ou não ser estúpido. E digo tentará, porque, como veremos, estupidez não é fácil de ser explicada conceitualmente.


Ele citará algumas características do que socialmente poderia ser considerado estupidez: falar muito de si, fazer julgamentos sobre qualquer coisa, ser vaidoso (a), elogiar os outros de maneira inconveniente, etc.


Mas para o autor, a estupidez não tem uma única faceta e ninguém está imune a ela. Ela poderá, inclusive, nem ser chamada de estupidez, mas de intelectualidade, genialidade, brutalidade, astúcia, e por aí vai.


A verdade, segundo o autor é, que ninguém se comporta todo tempo de modo tão inteligente quanto deveria e que cada um de nós é estúpido, se não sempre, ao menos de vez em quando.


Estupidez sempre esteve associado à falta de inteligência e ao longo do ensaio ele tentará desconstruir essa ideia.


O fato é que inteligência e estupidez não são antagônicas e podem, muitas vezes, andarem de mãos dadas. Pode, inclusive, um homem considerado inteligente agir de forma inteligente individualmente, mas quando fala como massa, como coletivo (em defesa, por exemplo, de uma religião, um partido político, um time de futebol), se comportar de maneira estúpida.


Até mesmo a arte possui a sua estupidez. Como é proibido falar de si mesmo, a humanidade recorre aos poetas que "podem narrar em nome do humanitarismo, que saboreou algo ou que o Sol está no céu, pode revelar-se, contar segredos, fazer confissões, dar satisfação pessoal sem considerações e é como se tudo se apresentasse como uma exceção em que a humanidade se permitisse algo que em geral se proibiria."


Então, se estupidez não é simplesmente falta de inteligência já que ela pode, inclusive, estar presente no gênio, o que é inteligência?


Para o autor, o conceito mais genérico de inteligência é competência. Portanto, tudo que fosse incompetente poderia também ser chamado de estúpido.


Mas o próprio conceito de competência é variável. Ele dirá que


"Em épocas de insegurança pessoal, a astúcia, a violência, o sentido aguçado e a competência física caracterização o conceito de inteligência. Em épocas caracterizadas por uma concepção de vida mais espiritual - com necessária reserva, pode-se dizer burguesa -, eles serão substituídos pelo trabalho intelectual. Dito de forma mais correta, a atividade superior do espírito deveria fazê-lo, mas no decurso das coisas resultou a predominância do desempenho racional, que se encontra escrito na cara vazia, sob a testa rígida da humanidade atarefada; e assim resulta que hoje a inteligência e a estupidez, como se não pudessem de outro modo, são relacionadas apenas ao intelecto e ao grau de sua competência, embora isso seja parcial em maior ou menor grau."

E é aí que resulta a dificuldade em definir estupidez conceitualmente, pois os próprios conceitos de competência e portanto, de inteligência e também de incompetência, oscilam.


Então ele partirá para uma outra argumentação. A de que estupidez é muito mais fácil de ser entendida por meio da ação. Se conceituar estupidez não é tarefa fácil, perceber uma ação estúpida, um agir estupidamente, pode ser mais compreensível.


Ele exemplificará dizendo que quando algo tem um efeito muito forte sobre alguém, ou a pessoa é tomada por um grande susto, ela poderá "perder a cabeça", gritar, berrar, se jogar às cegas ao perigo e ser dominada por uma tendência explosiva à destruição, ao xingamento e à lamentação. Ela deixa de agir objetivamente e passa a ter ações inúteis com base no pânico.


Para avançar na sua tese, Musil pede auxílio à psicologia.


Psicologicamente, o pânico é considerado uma interrupção da inteligência. Em estado de pânico o indivíduo passa a agir de forma confusa, sem método, sem objetivo, abandonando a razão e o instinto de salvação.


Para o autor, a estupidez tem parentesco com esse estado de pânico, com essa tendência cega à destruição ou à fuga desprovida de sentido e isso pode ser perigoso, pois se somente dessa forma uma pessoa consegue expressar algo, estará muito próxima da violência.


Esse pânico também pode ser representado pela crise no humanitário, uma crise da confiança que se tinha no sentido da humanidade. E ele, o pânico, que vem substituindo a segurança, tem impedido os indivíduos a conduzirem suas questões de forma livre e racional.


Quando Musil proferiu essa conferência em 1937, o mundo estava à beira de mais um grande conflito, a 2a guerra mundial. Também é a época de governo do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, ou seja, do Partido Nazista e, portando, liberdade e razão eram conceitos esquecidos e que caíram em desuso.


Liberdade e razão, emblemas da dignidade humana.


Foi nesse mesmo ano que a sua obra prima "O homem sem qualidades " foi censurado na Alemanha.


É por isso que o autor dirá que a estupidez é perigosa.


"A estupidez a que nos referimos aqui não é uma doença mental, porém a doença mais perigosa da mente, perigosa para a própria vida."

E como um perigo sempre à espreita, devemos rastreá-la dentro de nós mesmos e "não reconhecê-la apenas em suas irrupções históricas. "


Devemos identificá-la em nós enquanto indivíduos (essa estupidez derivada do pânico que pode levar à destruição porque, como dissemos, existem muitas estupidezes) para que possamos combatê-la antes que ela se torne uma estupidez constitucional coletiva.


E para reconhecê-la precisamos desenvolver a habilidade de pensar, que é treinável, como um esporte mental como diz o autor.


Conhecimento, disposição, autorreflexão e modéstia. Esse é o caminho para, já que todos nós somos estúpidos de vez em quando, sermos ao menos dentro de um limite conhecido e passível de correção.







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5 Comments

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Fernanda Alcantara
Fernanda Alcantara
Nov 21, 2024
Rated 5 out of 5 stars.

Parabéns novamente!

Sempre tive vontade de ler esse título, junto com o mais conhecido de Musil. Não tenho mais desculpas, pois já adorei a resenha e vou colocar na minha lista para estudos!

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joselanyafio
Sep 26, 2024
Rated 5 out of 5 stars.

Fico perplexa na sua capacidade de tornar conceitos abstratos em concretos e transpor p nossa atualidade. Parabéns. Excelente leitura e reafirmo o quão fácil é apontar o dedo p o outro e não reconhecer em nos, a estupidez.

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Obrigada amiga.. é muito mais fácil apontarmos o dedo para o outro ao invés de nos incluirmos em uma humanidade comum. Como dizia Terêncio, "sou humano e nada do que é humano me é estranho".

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patriciamilanis
patriciamilanis
Sep 24, 2024

Excelente reflexão Naty 👏👏

É fácil apontar a estupidez do outro, difícil mesmo é reconhecê-la em nós mesmos.

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Verdade amiga... e quando vemos exemplos históricos onde essa estupidez pode nos levar, devemos estar sempre atentos a nós mesmos , ao nosso pensar, para não sermos levados pela massa em uma estupidez constitucional e coletiva

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