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Por onde começar a ler Proust?

Atualizado: 18 de jul.

Quando iniciei a leitura de "Em busca do tempo perdido" de Marcel Proust,  eu não sabia nada a respeito da obra,  tampouco do autor. Minha decisão foi puramente emocional, pois é o livro favorito de meu pai. Já comentei algumas vezes que meu pai sempre foi meu principal "influencer", aquele que moldou meu gosto pela literatura e filosofia.


O modo entusiasmado, até mesmo encantado, de meu pai ao falar sobre o romance de Proust me contagiou e me levou à leitura.



Mas logo de início percebi que essa empreitada exigiria muito de mim. A prosa poética de Proust é ao mesmo tempo linda e diferente de tudo que eu já havia lido e exige uma dedicação constante do leitor, mas ao mesmo tempo, percebi que toda a minha jornada pessoal de leitura, de certa forma , me preparou para ela.


O romance de Proust exige que o leitor tenha uma postura mais imersiva , íntima, até solitária, com o processo de leitura e é exatamente esse tipo de leitora que fui me tornando ao longo dos anos.


Um leitor mais "devorador " de livros terá mais dificuldade com a prosa proustiana.


Então, em 2020 dei início ao meu processo. Comprei o box com todos os 7 volumes do ciclo romanesco que sai pela Editora Nova Fronteira com a tradução de Fernando Py e que passou 1 ano "criando poeira" na estante. Até dei início sozinha à leitura do primeiro volume, mas desisti.


Em 2021 fiz uma segunda tentativa. Li o volume 1 (No caminho de Swann)  e apesar de ter gostado muito, também não fui adiante. Na época, estava lendo em um grupo que não foi dado seguimento com a leitura dos outros volumes e isso acabou me desmotivando em continuar sozinha.


Até que em 2022, lembrando-me de uma frase de Santo Agostinho em Confissões,  "Tolle, Lege!", que traduzido do latim significa "Pegue, leia" , dei início à leitura que só acabou com a conclusão do último volume.


Confesso para vocês que chorei quando li a palavra FIM.



Passei meses em companhia de Proust e não apenas com sua obra prima. Li diversos livros de apoio, inúmeros trabalhos acadêmicos (teses e artigos), vídeos no YouTube e fiz diversos cursos sobre a obra de Proust com o Professor Doutor Jonas Martini.


Ao final do texto deixarei uma listinha com algumas sugestões de leituras extras que fiz durante a leitura da obra - mãe (Em busca do tempo perdido ).


Foi uma percurso árduo , mas muito gratificante  e que me trouxe uma bagagem não apenas literária, mas de experiências humanas como poucos livros foram capazes.


É com base nessa minha trajetória pessoal que escrevo esse post com dicas. São estratégias para quem ainda não é leitor de Proust e assim como eu, leitor comum, não acadêmico, deseja mergulhar em suas palavras, não com o intuito de analisá-las, mas de saboreá-las.


Eu costumo dizer que leio Proust como Rubem Alves lia Nietzsche.  Ele dizia que


"Os saberes se fazem com palavras: artigos em periódicos. Assim, nas escolas, as provas se fazem com palavras. Os vestibulares, igualmente, são feitos com palavras. Passa quem sabe as palavras certas. Para os saberes, as palavras bastam. Escola não ensina o sabor. Não há formas de “avaliar” o sabor." 

É para isso que leio Proust, não pelo SABER, mas pelo SABOR.


Espero que as dicas que aqui coloco ajudem vocês, leitores, a se aventurarem por Combray, Balbec, Paris e que assim como para mim, esses e outros lugares e personagens façam parte de vocês pelo resto da vida.


Dica 1 : Comecem pelo ensaio "Sobre a leitura":




A prosa poética de Proust,  como já falei,  é diferente de tudo que já li e isso me causou um certo  estranhamento ao ler o seu romance . Ao  ler textos menores de um autor (contos, ensaios) temos essa possibilidade de previamente conhecer a sua escrita e o seu estilo, o que facilitará a leitura das obras mais densas.


Em "Sobre a leitura",  escrito em 1906 por Marcel Proust como um prefácio ao livro  "The sesame and the lilies"(Sésamo e os lírios) de John Ruskin e publicado posteriormente como um ensaio independente, nos traz reflexões sobre o valor da leitura. Proust através da sua prosa única fala sobre o verdadeiro papel que a leitura deve exercer em nossas vidas. Nos lembra que a leitura sem reflexão além de ser inútil, é também perigosa por que a busca da leitura é a busca da verdade e essa não está fora de nós.


Não me deterei muito nele porque já tem um post exclusivo sobre esse texto aqui no blog que é um dos meus ensaios favoritos sobre literatura e leitura.


Dica 2: Se possível invistam em um dicionário de pessoas e lugares



A quantidade de personagens no "Em busca do tempo perdido" e a ligação entre eles é outro fator que pode dificultar a leitura. É enorme a galeria de personagens , tanto que existe um dicionário para listá-los. Você também pode ir anotando em um caderninho a parte à medida que eles forem surgindo, mas o dicionário traz uma explicação sobre cada um deles e como eles se relacionam com os demais, além de citar os lugares que estão presentes na obra. Eu gosto, inclusive, de pegar o dicionário e ficar lendo para matar a saudade desses seres ficcionais que parecem fazer parte de mim. É obrigatório? Óbvio que não , mas é um facilitador .


Dica 3: Estudem sobre o caso Dreyfus e o processo judicial sofrido pelo escritor Zola



O caso Dreyfus  foi um caso verídico ocorrido na França no ano de 1894. Trata-se de um erro judicial que condenou a prisão perpétua na ilha do Diabo o oficial Alfred Dreyfus, acusado injustamente por traição.


Dreyfus era um oficial do exército francês e foi acusado de passar informações secretas sobre a defesa nacional para os alemães. Porém, o verdadeiro culpado era o militar Esterhazy, um homem sem escrúpulos e que conhecia segredos dos generais e por essa razão acabou sendo protegido pelos militares.


O que motivou a acusação ao nome de Dreyfus foi o fato dele ser judeu e era crescente na França o movimento antissemitista.


O caso que até então estava sendo tratado a portas fechadas por se tratar de um processo militar , veio à público e dividiu a sociedade francesa em dreyfusistas e antidreyfusistas.


Nesse momento, os apoioares de Dreyfus e especialmente o Scheurer - Kestner procuram Zola para que o escritor escrevesse artigos em defesa de Dreyfus para serem publicados nos jornais franceses. A escolha do nome de Zola foi porque um ano antes ele havia escrito e publicado um artigo em defesa dos judeus e era então provável defensor da causa.


Zola mergulha fundo na defesa de Dreyfus e com isso abre mão de uma indicação à Academia Francesa, perdeu audiência de uma parte do público, foi julgado e condenado ao exílio de 1 ano na Inglaterra. 


O que motivou o processo contra Zola foi uma carta que ele escreveu ao Presidente da República contando todos os detalhes do caso, afirmando a inocência de Dreyfus e fazendo acusações ao alto comando militar. Essa carta foi publicada no jornal L' Aurore com o título J'accuse (eu acuso).


Dreyfus foi indultado anos depois graças ao empenho e ao processo do Zola por que ao acusar o escritor, os militares franceses cometeram alguns equívocos, entre eles a revelação de que uma prova importantíssima que serviu para condenar Dreyfus era falsa e havia sido produzida por outro militar, Henry.


Sem Zola, Dreyfus teria permanecido preso até a morte injustamente.


Esse livro (J'accuse - A verdade em marcha) foi publicado por Zola em 1901, um ano antes de sua morte  e reúne todos os artigos sobre o caso que o escritor publicou nos jornais franceses à época e estão postos em ordem cronológica.  Vale muito a pena a leitura.


Dreyfus foi indultado em 1906, porém  Zola já estava morto nessa época . O romancista foi encontrado  morto em 1902 por asfixia em condições até hoje  não esclarecidas.


Uma dica extra: em 2020 foi lançado um filme de Roman Polanski sobre esse assunto chamado "O oficial e o espião") .


Mas por que esse conhecimento prévio ajuda na leitura de Proust?


Porque a partir do livro 3 (O caminho de Guermantes)  esse assunto é extremamente abordado nos ambientes em que o narrador frequenta , especialmente no salões parisienses. O ambiente dos salões franceses é uma parte importante da obra.  São neles que a elite expõe seu modo de viver (geralmente hipócrita) e seus pensamentos sobre os mais variados assuntos, desde futilidades à assuntos mais relevantes, e o caso Dreyfus é tão citado praticamente durante a obra inteira que os personagens (assim como a sociedade francesa da época) se dividiam entre dreyfusista e antidreyfusistas. Sinal de que a obra de Proust dialoga muito bem com a sua contemporaneidade.


Não ter esse conhecimento "travou" a minha leitura no 3o volume. Eles falavam tanto sobre isso que precisei parar e estudar sobre o caso para depois voltar e me situar melhor no texto , mas você, futuro leitor proustiano, não precisará passar por isso porque já estou te dando essa dica.


Dica 4 : Conheça sobre o autor e seu processo criativo



Conhecer sobre a vida de Proust e seu processo criativo é muito interessante. Saber a sua dificuldade para publicar seu primeiro romance (para quem não sabe, Proust é um autor autopublicado. Seu primeiro romance foi publicado às suas custas depois de ter sido recusado pelas editoras),  sobre sua doença, sobre a falta de crença que as pessoas que eram de seu ciclo social tinham na sua literatura,  tudo isso vai alimentando seu imaginário e aumentando o seu interesse em ler a obra desse autor que é muito citado, mas ainda é pouco lido (pelo menos no Brasil), mas que teve papel fundamental na literatura moderna e influenciou diversos autores através da sua técnica na chamada "literatura do eu", como Virgínia Woolf e mais contemporaneamente a nós, Annie Ernaux.


Dica 5: Se possível leia em grupo



A minha primeira tentativa de leitura de Proust foi sozinha. Apenas iniciei o volume I. Depois li o volume I, dessa vez na íntegra em um grupo que não progrediu. Quando decidi dar continuidade, resolvi lançar no meu Instagram (@aleitoraclassica) a proposta de um projeto de leitura conjunta e para a minha grata surpresa,  muitos de meus seguidores tiveram interesse em participar. Começamos inicialmente com um grupo de 25 pessoas, das quais 5 chegaram comigo ao final do 7o volume.


Mas os que não finalizaram não foi por falta de interesse na obra, mas por outras questões de estudos e profissionais, já que esse projeto com encontros quinzenais durou em média 10 meses de dedicação quase exclusiva.


Ninguém leu apenas um volume. Todos os 25 leram mais de 3 volumes,  ou seja, metade do caminho praticamente já foi traçado e a sementinha plantada.


Por que uma coisa é fato: quem começa ler o "Em busca do tempo perdido" , termina. Pode demorar,  pode ir e voltar, mas termina. É algo que fica dentro de nós clamando por continuidade e essa obra só cresce quando compartilhada com outros leitores.


Eu sempre defendo a leitura compartilhada. O ponto de vista de outros leitores não diminui o meu, pelo contrário, amplia o meu ponto de vista. É uma experiência que todo leitor deveria ter pelo menos uma vez na vida.


Essas foram as dicas e abaixo deixarei algumas sugestões de leituras complementares como já havia mencionado e gostaria de agradecer a quem prosseguiu comigo até o final dessa jornada.


O "Tolle, Lege!" agostiniano foi um chamado divino à sua conversão e o meu foi a porta de entrada para a maior experiência literária da minha vida, um mergulho interior inesquecível.


"TOLLE, LEGE!"

"PEGUE, LEIA!"


É a única coisa que me resta dizer.



Vamos aos livros ?


1.  Como Proust pode mudar a sua vida (Alain de Botton);


2. O essencial sobre Marcel Proust  (António Mega Ferreira);


3. Marcel Proust: Realidade e criação (Vera de Azambuja Harvey);


4. Marcel Proust: o homem / o escritor / a obra (Edição especial da revista Europe com tradução de Ferreira Gullar);


5. De Proust a Camus - Vida e obra dos maiores escritores franceses do século XX (André Maurois) ;


6. Proust - O fim do ciúme e outros contos (tradução  de Dorothée de Bruchard - Editora hedra) ;


7. Marcel Proust  - Salões de Paris (Editora Carambaia) ;


8. PROUST - Biografia ilustrada (William Sansom) Coleção Vidas Literárias - Editora Zahar);


9. Proust e os signos - (Gilles Deleuze - Editora 34);


10. Contra Sainte - Beuve (Marcel Proust- Editora Âyiné).


Todos esses livros fizeram parte da minha jornada , foram lidos e estudados e por isso indico.


Ainda tenho outros na estante que estou lendo em pausas , mas esses já darão a vocês um excelente arcabouço teórico.


Espero que gostem . E leiam Proust.


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