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Paixão Simples (Annie Ernaux)

Foto do escritor: A leitora ClássicaA leitora Clássica

Atualizado: 11 de jul. de 2024

Tem um texto de F. Scott Fitzgerald que diz:


"Isso é parte da beleza de toda a literatura. Você descobre que seus desejos são desejos universais, que você não está só e isolado de todo o mundo. Você pertence."

Decidi começar essa resenha por esse trecho porque ele se adequa perfeitamente ao livro de Annie Ernaux, Paixão Simples.



Tive curiosidade de ler essa autora, não pelo Nobel de literatura recebido por ela em 2022 (confesso que não dou muita bola a essas premiações) , mas por ter descoberto através dos milhares de textos que inundaram a Internet a seu respeito, que ela teve como inspiração Marcel Proust que é o meu escritor favorito.


Essa aproximação entre Ernaux e Proust  foi a motivação que eu precisava para colocar a escritora entre as possíveis leituras de 2024 e,  de fato, é possível percebê-la, não em termo de estilo,  já que Ernaux tem uma escrita dura , seca,  sem floreios e Proust tem a prosa poética mais linda que já li, mas na temática, já que é possível perceber como a autora utiliza a escrita de si como forma de encapsular uma parcela de tempo que teima em ceder à força da indiferença.


Por mais importante que tenha sido um amor,  uma acontecimento, o tempo nos torna indiferentes.


Mais do que narrar a história de uma paixão, Annie deseja eternizar através da escrita aquilo que ela sabe que sucumbirá ao poder destruidor do tempo e ela é bem proustiana nesse aspecto.


Quando seu relacionamento chegou ao fim, a escrita também foi a forma que ela encontrou de suportar a dor da ausência,  a falta de esperança e o correr do tempo em que ela não sentia que vivia, apenas continuava a envelhecer.


Quando se vive uma paixão avassaladora da forma como Annie viveu,  digo isso também por experiência própria,  (e é isso que traz uma aproximação real entre a autora e seus leitores,  nós sabemos perfeitamente do que ela está falando), sentimos uma tremenda confusão interior causada por uma pessoa que antes não possuía nenhuma ligação conosco e , de repente, dá um outro sentido à nossa existência e nos consome inteira, mas quando o fim, inevitável na paixão,  bate à porta, quando o tédio se instala e quando nos é tirada a fantasia e somos obrigados a cair de paraquedas na realidade, percebemos que um dos aspectos patológicos da paixão (sim, muito se teoriza que paixão é uma doença,  um estado de demência temporária) é a dependência de um outro, como se esse outro que agora nos falta tivesse tragado todo nosso ser e não sobrado nada.


Uma das formas para enfrentar a dependência inevitável que esse tipo de sentimento nos traz (vivemos por e para ele),  suportar o fim e nos entendermos novamente como indivíduos autônomos é através da arte criadora.


Somos seres criadores. Criar algo por si mesmo, especialmente de forma artística (desenhar, pintar, escrever) , nos faz entrar em conexão com a nossa essência e assim, nos libertarmos daquela sensação de vazio que ficamos quando o outro sai da nossa existência, como se ao ir embora tivesse levado tudo de nós.


A pessoa que mais me ensinou sobre relações interpessoais foi meu pai. Ele costumava dizer que, se observarmos a realidade existencial, veremos que o outro só existe por causa de um sujeito que  lhe empresta sentido. Nossa conversa se baseava na ideia de Jean Paul Sartre sobre a construção do sujeito. (Amo discutir filosofia com ele).


Sem um sujeito o outro jamais existiria, tudo permaneceria no mais absoluto nada. Tudo e todos permaneceriam no mais completo vazio existencial.


No entanto, o homem desvela o outro, empresta- lhe sentido. Eu olho o outro e o transformo em objeto, empresto - lhe sentido. Determino se é importante ou secundário. É assim que aquela pessoa aleatória, por atribuirmos sentido a ela, e essa construção de sentido é causada por múltiplos fatores que não cabem nesse post, se transforma em não mais um ser qualquer, mas no "ser amado".


E o mesmo acontece com o outro em relação a nós. Na subjetividade do outro, não somos o sujeito, mas o objeto que poderemos ter um sentido diferente daquele que gostaríamos.


Não sei, mas ao conversar com meu pai sobre isso, sempre me passou a impressão de uma certa liberdade. Não temos controle sobre quais sentidos os outros nos atribuem. Isso traz algum conforto (pelo menos para mim).


Mas vamos à obra:


Nesse livro, Ernaux conta a história de uma paixão avassaladora que viveu com um homem casado, mas como disse anteriormente,  Fitzgerald é um bom preâmbulo para o livro de Annie porque a sua narrativa , que é autoficcional, não se limita a contar uma história de um amor de duração improvável por todas as impossibilidades (ele era casado e estrangeiro), mas um verdadeiro inventário desse estado de apaixonamento que sequestra a razão,  estreita a fronteira entre sanidade e loucura, e  isso faz parte do rol das experiências humanas mais universais que existem.


Afinal, quem nunca se apaixonou? Annie vai explorar em sua obra, além de outras questões como veremos adiante, esse "conjunto de signos que constituem o romance não escrito de uma paixão" e acredite, ele é o mesmo seja na França, no sul do Brasil ou em outro lugar qualquer.


Particularmente falando, senti-me muito próxima de Ernaux. Já vivi uma grande paixão com elementos bem parecidos com a sua (exceto o fato de ser casado), mas igualmente distante ("estrangeiro" por morar em um estado diferente do meu ) e algo que a autora fala e que me foi de fácil constatação, é justamente esse efeito suspensivo do tempo cronológico.


O apaixonado só conhece duas esferas temporais: presença e ausência. As horas, os dias, meses e anos são apenas detalhes necessários para que a vida ordinaria, cotidiana, se organize e flua, mas é como um tempo fictício em que nada representa a duração interior das esperas que sempre sofre o ser apaixonado.


Ao esperar por horas ou dias o toque do telefone ou uma mensagem qualquer, o tempo se amplifica, sentimos um pedacinho do que se chama eternidade,  mas quando o objeto da nossa paixão está presente, o tempo se reduz a um breve instante.


Um outro ponto importante levantado pela autora é o ócio necessário par a viver uma grande paixão. O enamorado, apaixonado, obcecado (ela utiliza bastante o termo obsessão que não julgo em nada inapropriado), não só precisa como deseja ardentemente que nada atrapalhe essa entrega absoluta aos pensamentos, fantasias e sensações provocadas pela paixão.


Ler, trabalhar,  estudar, socializar, são apenas obstáculos a serem vencidos até que se chegue o momento ocioso em que somente a fantasia provocada pela paixão nos preencha e enebrie.


Chega a ser irritante o momento em que algum desavisado nos tira do fluxo imaginário de idealizações.


E no final, quando nada mais resta além do castelo de recordações (reais ou imaginárias já que elas não são de fáceis distinções), fica a sensação de que os dias passarão inúteis, apenas como uma mera obrigação da física de que o mundo terá que continuar girando em torno do sol.


O curioso é que essas sensações são atribuídas geralmente a pessoas jovens e imaturas, mas Ernaux prova, mais uma vez, o aspecto universal dessa emoção: ela já era uma mulher divorciada, com dois filhos crescidos quando viveu tudo isso.


A paixão desconhe fatores etários, sociais, econômicos, intelectuais. Annie nos liberta , nós mulheres maduras, do peso da culpa de nos sentirmos vulneráveis diante de uma paixão.


Até nisso o elemento tempo está presente. Há um tempo limite para viver ou sentir uma grande paixão?


Sua obra é repleta de diferentes temporalidades. O tempo da espera. O tempo da vivência. O tempo das memórias. O tempo do isolamento. O tempo do vazio e o tempo da escrita. 


E também o tempo da dor.


Quando somos , por vontade ou circunstâncias,  obrigados a esquecer uma grande paixão, esse tempo aos poucos vai deixando de ser contínuo. Um dia dói, no outro nem tanto. Até que chegue o momento em que a indiferença e o esquecimento submergem do nosso interior e se tornam palpáveis (como bem já explicou Proust).


Ernaux passou por todos esses tempos e viveu-os de forma intensa. Eu também. Com a diferença de que pela minha absoluta falta de talento, minha paixão ficou e ficará eternamente na esfera privada.


Paixão Simples. Quando penso nesse título, não consigo compreender a união entre essas duas palavras. A minha paixão não foi simples. Foi complexa, visceral, obscena. O que me faz concordar perfeitamente com uma frase que li não lembro aonde que diz :


"Tens um inimigo, deseja-lhe uma paixão".


Em uma passagem do livro,  Ernaux  dirá


"Fico me perguntando se, na verdade, não escrevo para saber se os outros fizeram ou sentiram as mesmas coisas que eu, ou então para que achem normal senti-las."

Obrigada, Annie Ernaux!

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4 Comments

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patriciamilanis
patriciamilanis
Jul 14, 2024

Lindo post Naty 💜

Ainda não li nada desta autora, mas pretendo começar pelo livro "O Lugar".

Inclusive aguardo resenha dele, hahah 🤗

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O lugar será a próxima resenha dela aqui no blog, amiga. Gostei bastante dessa leitura também. Me identifico com a forma da Ernaux de escrever.

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Jéssica Linhares
Jéssica Linhares
Jul 13, 2024

Nossa que texto top! ... eu iniciei minha primeira leitura de um escritor russo o nome do livro é o mestre e a margarida ... to gostando.

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Que legal, Jeh. Literatura russa é um caminho sem volta hahaha

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