Apesar de nessa edição conter dois textos do autor, hoje falaremos apenas de O sonho do Titio, novela publicada em 1859.
Ela foi escrita após o período em que Dostoievski ficou em exílio na Sibéria, mas essa veia crítica do autor em relação a pontos importantes que ele apresenta no texto, em especial sobre a sociedade russa, já havia sido percebida em escritos anteriores, como por exemplo em "Crônicas de Petersburgo " de 1847, e portanto, anterior a sua prisão que ocorreu em 1849, como veremos mais adiante.
Nessa novela, narrada em 3a pessoa por um narrador bastante peculiar , conheceremos "a história de ascensão e queda de Mária Alieksándrovna Moskaliova e sua família".
E porque esse narrador é peculiar ?
Por que ele se envolve ativamente na história ao ponto de , desde o início, nos informar que não é nada imparcial e que tem por Mária Alieksándrovna uma preferência escrachada.
Também porque ele nos antecipa personagens e fatos que serão conhecidos apenas mais tarde ao longo da narrativa e é irônico em muitas de suas falas.
Ele, um profundo conhecedor não só das fofocas de Mordássov, mas também da personalidade de seus habitantes , resolve escrever uma crônica sobre esses acontecimentos (ascensão e queda de Mária e sua família) "como lembrança de um divertimento tranquilo nas horas de ócio e prazer."
Esse narrador é tão astuto que, mesmo descrevendo Mária Alieksándrovna Moskaliova como uma mulher fofoqueira (a primeira fofoqueira do mundo e a maior de Mordássov), interesseira e manipuladora, quase nos leva a simpatizarmos com ela.
Ele dá um tom heróico para todas as suas façanhas, mas quando a analisamos mais de perto, percebemos que Mária Alieksándrovna é, na verdade, uma mulher de caráter duvidoso e que faria qualquer coisa para progredir na vida e, principalmente, levar sua filha à conseguir uma posição de destaque na sociedade.
Moradora de Mordássov, uma pequena localidade da Rússia, Mária era influente na cidade e muitos até a temiam, algo que a agradava.
Era casada com um homem que não estava muito bem de saúde mental, o qual ela tratou logo de mandar para isolamento na casa de campo (atitude que nosso amigo narrador considerou de extremo bom senso) e tinha uma filha, Zina, menina educada e muito bonita, mas que viveu um romance clandestino com um professor, admirador de Shakespeare e pobre, e acabou se tornando "mal falada" na cidade.
O sonho de Mária Alieksándrovna é ver a filha casada e bem posicionada socialmente, mas em uma cidade tão mexeriqueira como Mordássov, ninguém iria pedir a mão de uma moça com uma reputação comprometida.
O único pretendente que apareceu para Zina foi Pável Alieksándrovitch Mozglyákov. Ele era completamente apaixonado por ela e esperava ansiosamente por uma resposta ao seu pedido de casamento. (No início do primeiro capítulo, o narrador já havia nos informado que esse casamento não aconteceria).
Pável Alieksándrovitch Mozglyákov era um jovem animado, de boa aparência, idealista. Mária sempre mencionava suas "ideias novas" (ideias abolicionistas).
Essa novela de Dostoievski é de 1859 (como já foi dito), época em que estava em plena força as reformas de Alexandre II que assumira o poder após o falecimento de seu pai Nicolau I em 1855, sendo a principal delas, a abolição da servidão em 1861, o que lhe rendeu o título de "o Libertador".
Mária vai mencionar que Mozglyákov tinha ideias modernas e que pretendia alforriar seus camponeses (mujikes).
Mas ele era também interesseiro e bajulador.
Mozglyákov vai até Mordássov em busca da resposta de Zina, mas não chegará sozinho.
À caminho da pequena cidade, ele encontra o Príncipe K , a quem chama de Titio (suspeitamos pela forma irônica com a qual ele se refere a esse "parentesco" que, na verdade, ele não é sobrinho legítimo do Príncipe). O Príncipe estava em uma carruagem que havia tombado na estrada e Mozglyákov o convida para acompanhá-lo até Mordássov.
O Príncipe aceita o convite e ambos partem para a casa de Mária Alieksándrovna.
Ele já havia estado em Mordássov no passado e já conhecia Mária. Era parente distante de Anna Nikoláievna Antípova, mulher do promotor da cidade e inimiga jurada de sua anfitriã.
Anna ficou bastante enfurecida ao saber que o Príncipe se hospedara na casa de sua rival ao regressar à Mordássov.
O Príncipe K era um homem já bastante idoso e senil quando chegou à 2a vez a cidade acompanhando Mozglyákov.
Possuía uma aparência visivelmente decrépita, embora seja mencionado que se vestia na última moda para parecer jovem.
Em sua juventude havia dilapidado toda a sua fortuna na ostentação de um alto padrão de vida como um verdadeiro "bon vivant" , ao ponto de chegar à velhice completamente falido.
Ocorre que, inesperadamente, o Príncipe recebe uma herança e recupera seu prestígio social.
Após receber a herança, ele parte para Petersburgo, mas as coisas não deram muito certo por lá.
Alguns parentes (e futuros herdeiros), com medo do Príncipe acabar novamente com todo o patrimônio, decidem enviá-lo a um manicômio.
Com medo, o Príncipe se refugia em sua propriedade no campo sob os cuidados de uma mulher que o acompanhou desde Petersburgo chamada Stiepanida Matvêievna, e que mandava e desmandava em todo seu patrimônio.
Foi aproveitando uma viagem rápida dessa senhora à Moscou que o Príncipe resolve chamar o seu cocheiro e partir para um passeio sem a vigilância de Stiepanida e assim, devido ao acidente com a sua carruagem, teve a oportunidade de encontrar Mozglyákov e chegou à Mordássov para passar apenas 3 dias. Estadia curta, mas que acabou deixando marcas inesquecíveis.
A descrição que o narrador faz do Príncipe é a mais bizarra possível. Era um excêntrico, passava horas incontáveis fazendo a toalete, experimentando perucas e fraques, usava peruca, bigodes e suíças postiças, tudo era postiço (até os dentes), passava pó de arroz e ruge diariamente, usava espartilho, era manco de uma perna, o olho direito era de vidro, além de que passava o dia inteiro se perfumando e passando cremes, estava com graves programas de memória, se dizia amigo íntimo de Lord Byron e tinha uma mania de responder as pessoas em francês.
Quando li a descrição do Príncipe K, imediatamente lembrei-me de uma crítica feita por Dostoievski em uma crônica escrita em 13 de abril de 1847 sobre a "europetização" da sociedade russa que tentava imitar os hábitos, e o estilo vida, em especial dos franceses. Para Dostoievski, essa tendência de supervalorização do que vinha "de fora" , colocava um fardo pesado em cima dos russos , o fardo da imitação.
Em "Crônicas de Petersburgo" (1847) que já tem resenha aqui no blog, Dostoievski diz
"Somos todos como trabalhadores a carregar um certo fardo que lançamos, por vontade própria, sobre nossos ombros, e felizes da vida por conseguirmos carregá-lo de modo europeu e com o devido decoro, ao menos até a temporada de verão. E de que tarefas não nos encarregados a troco de nada, por imitação!" (Crônicas de Petersburgo)
Inclusive, já próximo ao final da novela, o Príncipe afirma desejar ir para o exterior (leia-se a Europa) em busca dessas novas ideias.
Ele dirá
"Agora todo mundo vai para lá à procura de novas ideias. Pois eu também quero adquirir no-vas i-dei-as."
O fato é que a chegada do Príncipe à casa de Mária Alieksándrovna causou um verdadeiro reboliço em Mordássov.
Mária Alieksándrovna morava apenas com a filha Zinaída Afanássievna, a Zina, e uma parente distante que fazia a função de serviçal chamada Nastácia Pietrovna Zyáblova.
Mária, em conversa com Mozglyákov, diz que a senilidade do Príncipe vinha do profundo isolamento ao qual ele havia se submetido. Vivia praticamente como um eremita.
Mozglyákov, então, lança uma ideia que fez os olhos de Mária brilharem. Ele sugeriu que uma saída seria casar o Príncipe com uma boa moça, de preferência pobre , que cuidaria dele e que veria o casamento com o "quase defunto" como um favor.
Sua ideia era casá-lo com a empregada da casa, Nastácia Pietrovna, mas Mária, que é a maior interesseira da cidade (e muito esperta, diga-se de passagem), tem outros planos e começa a arquitetá-lo em segredo.
Nastácia Pietrovna, ao ouvir a sugestão de Mozglyákov fica toda animada com a possibilidade de casar com o velhote. Era viúva, tinha dois filhos e era a "ponte" de "leva e traz" da casa de Mária com as outras moradoras de Mordássov e vice - versa.
Por falar em "ponte" , uma característica dos moradores de Mordássov é a afeição por mexericos. Cidade pequena , onde todos queriam estar a par de tudo o que acontecia na cidade.
Mordássov lembrou -me bastante a própria Petersburgo. Dostoievski em "Crônicas de Petersburgo" irá falar que esse hábito de mexericar é próprio do petersburguês que considerava que ter uma novidade de reserva era melhor do que ter capital.
"Quando um cidadão de Petersburgo fica sabendo de alguma novidade rara e corre a contá-la, ele sente de antemão uma certa volúpia espiritual; sua voz se torna lânguida e treme de prazer; e é como se tivesse o coração banhado em essência de rosas." (Crônicas de Petersburgo)
Mas voltemos à Mordássov. Nastácia já passava dos 30 anos (o que para a época era considerada velha) e ainda alimentava o desejo de casar novamente. O Príncipe seria uma boa oportunidade, mas como mencionei, essa não era a ideia de Mária.
Sendo o Príncipe um aristocrata e rico, sua vontade era casá-lo com sua filha Zina, nem tanto pelo dinheiro, mas pelo título de princesa, mesmo sendo uma aristocracia em decadência.
O problema era que Zina ainda era apaixonada pelo professor que estava muito mal de saúde. Ela não tinha vontade de casar com ninguém enquanto o professor estivesse lutando pela vida. Diziam que ele estava com tuberculose.
Era por isso que Zina não dava a resposta definitiva à Mozglyákov sobre seu pedido.
Mária lança a ideia do casamento com o Príncipe para a Zina que fica chocada com o absurdo proposto pela mãe.
Mária tenta convencer a filha de todas as formas, apelando inclusive para seus valores cristãos, mas Zina permanece irredutível.
Nesse momento da narrativa há um verdadeiro acerto de contas entre mãe e filha sobre o relacionamento dela com o professor e o que Mária precisou fazer para salvar, de alguma forma, a reputação da filha.
Mária, então, dá um "golpe" certeiro na consciência de Zina. A mãe afirma que ela poderia ver no casamento com o Príncipe, a possibilidade de usar os seus recursos para salvar a vida do professor com um tratamento nas ilhas espanholas.
Dostoievski, como sempre costuma fazer em suas obras, através dos diálogos entre os personagens, nos faz refletir sobre nossa condição moral.
Nessa conversa entre Mária e Zina, ele vai nos fazer refletir na seguinte questão: até onde é permitido irmos para salvar a vida de alguém que amamos ?
Mária dirá
"O engano é perdoável para salvar uma vida humana. (...) farás isso para salvar a vida dele e por essa razão tudo é permitido!"
É impressionante como Dostoievski nos leva a refletir sobre os valores que são considerados universais, mas que no âmbito do pessoal se tornam questionáveis.
Enganar, trair, mentir, são valores universalmente reprováveis, mesmo para salvar uma vida humana, mas e se fosse alguém que você ama? Tudo seria permitido ? É isso que Mária tenta incutir na cabeça de Zina e que Dostoievski utiliza para nos confrontar.
De um lado Zina, que acha uma baixeza e um egoísmo sem tamanho a proposta da mãe, mas acaba cedendo. Suas convicções não foram impeditivos suficientes e de outro, Mária , que tudo relativiza, que acha que tudo na vida DEPENDE DO PONTO DE VISTA.
O fato é que Zina aceita se casar com o Príncipe, apesar de afirmar que os falsos sentimentos nobres que a mãe tentou infundir em sua consciência não foram a causa da sua decisão.
Mas a luta de Mária não para por aí. Ela agora precisa dar um jeito para que o Príncipe faça o pedido.
E seus esforços terão que ser maiores do que ela imaginava, pois ela fica sabendo por Sofia Pietrovna que as suas rivais, Anna Nikoláievna e Natália Dmítrievna, já estão também armando para conseguir fisgar o Príncipe e que toda Mordássov comenta sobre as suas intenções em relação à Zina.
Mas Mária não terá que lidar apenas com as inimigas declaradas. Nastácia Pietrovna, a serviçal que escutara atrás da porta toda a sua conversa com Zina, se sentiu apunhalada pelas costas e declarou vingança à ambas.
Nastácia Pietrovna, afetada por não ter chance de ser a noiva do Príncipe, faz Mozglyákov ouvir atrás da porta (ironicamente algo altamente reprovável na sociedade de Mordássov) , a conversa entre Mária Alieksándrovna, Zina e o Príncipe K.
Ele acaba descobrindo todo o plano e tira satisfações com Zina que revela a ele toda a verdadeira impressão que tem a seu respeito.
Sentindo-se furioso, rejeitado, enganado, Mozglyákov tentará de tudo para impedir esse casamento e é aqui que encontra-se a explicação do título do livro.
Ao encontrar o tio que se preparava para oficializar o pedido de casamento feito no dia anterior, Mozglyákov convence o Príncipe que tudo não passou de um sonho, que não havia nenhuma noiva e que nenhum pedido havia sido feito.
Senil e desorientado, o Príncipe acaba acreditando na palavra de Mozglyákov e Mária vê seus planos frustrados.
Mas as reviravoltas de enredo não param por aí. Vou deixar a cargo de vocês, leitores, descobrirem o final dessa história que é surpreendente.
Gostei bastante dessa novela, em especial do narrador, que na minha opinião é o personagem principal do livro.
A história é interessante, fluída, e apesar de ter um tom até humorístico, é bastante crítica em relação a sociedade russa.
A forma como é contada , repleta de ironia dramática, é o ponto alto da narrativa.
Ter feito essa leitura após a de "Crônicas de Petersburgo" fez muita diferença na minha experiência pessoal, tanto por semelhanças no estilo, porque esse narrador sarcástico que se propõe a ser um cronista da cidade (o subtítulo do livro é justamente "Das Crônicas de Mordássov"), muito se assemelha ao próprio Dostoievski em sua atividade de cronista de Petersburgo, quanto pela materialização na ficção de críticas e reflexões sobre a sociedade russa que Dostoievski, anos antes, já havia feito em sua experiência jornalística.
Ótima resenha Naty, fiquei muito curiosa para saber o final dessa história.