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O leitor incomum (George Steiner)

Foto do escritor: A leitora ClássicaA leitora Clássica

Atualizado: 17 de jul. de 2024

Inaugurando a categoria de ENSAIOS aqui no blog, resolvi trazer para vocês aquele que é o meu ensaio sobre literatura favorito: "O leitor incomum" de George Steiner.


Inclusive, esse ensaio é um dos responsáveis para a escolha do nome desta página (A leitora clássica) e foi o texto que mudou completamente a minha percepção sobre o ato de ler e a leitura. Sobre a escolha do nome do meu blog, leia aqui.


O leitor incomum é o primeiro ensaio dessa obra que traz mais outros 20 textos do autor e eu gostaria de fazer uma menção honrosa ao ensaio "O que é literatura comparada?" que foi uma aula inaugural que o Steiner deu na Universidade de Oxford em 1994.


Mas do que trata "O leitor incomum"?



No início do ensaio, Steiner vai nos levar para a pintura de Chardin , o quadro Le Philosophe Lisant de 1734.  Esse retrato traz a imagem de um homem sentado em uma escrivaninha, lendo. Ele utilizará elementos da imagem como a roupa do leitor de Chardin,  a ampulheta,  os medalhões , a pena, entre outros, para nos mostrar todo o simbolismo que envolve essa obra e relacioná-la com o ato de ler.


E aqui eu já deixo uma dica que fez toda a diferença na minha leitura e releituras desse texto: Ler olhando a imagem do quadro de Chardin. É um ensaio muito visual.


No primeiro momento, Steiner vai nos fazer observar as vestimentas do leitor.  Ele está vestido de forma elegante, como a caminho de um grande evento. Ele não se posiciona diante do livro de qualquer jeito. A questão não é a roupa em si, mas o preparo para a leitura. Como Steiner vai nos dizer nesse trecho que cito abaixo, não é questão de vestimenta, mas de investimento.


"O leitor não vai ao encontro do livro em trajes informais ou em desalinho. Veste-se para o grande evento, comportamento esse que remete a nossa atenção a uma síntese de valores e sensibilidade que abarca tanto a ideia de "vestimenta " como de "investimento ". (...) A leitura ali não é uma ação casual, impremeditada."

Outro símbolo para o qual o autor vai dirigir nosso olhar é para o chapéu. O leitor de Chardin lê de cabeça coberta. Na maioria das tradições hebraicas e greco - romanas, ler de chapéu significa que trata-se de um texto sagrado,  é algo que lhe incendiará o espírito.


"O Chapéu do leitor sugere precisamente essas conotações de cerimônia de intelecto, da tensa apreensão do significado pela mente, a mesma que induz Próspero a usar trajes palacianos para abrir seus livros mágicos."

Outro elemento importante da imagem é a ampulheta. Ela representa a relação entre o tempo e o livro. Para o autor, sua presença no quadro enfatiza a ideia de permanência do livro e sua força contra a morte e a noção da nossa própria impermanência. A vida é breve. O leitor, à medida que lê, sua existência se esvai (como a areia da ampulheta), mas o livro permanece. O tempo passa, mas a palavra escrita fica. Ele ressalta esse caráter de não perecimento do livro através da forma oito da ampulheta que é o símbolo do infinito.


A ampulheta também pode significar a brevidade da nossa vida diante da infinidade de livros não lidos. Essa angústia que todo leitor, no estilo Philosophe Lisant, já experimentou de alguma forma.


Sobre a mesa do leitor de Chardin também podemos observar três medalhões de metal. Esses medalhões,  de acordo com Steiner, também são textos, uma vez que neles estariam gravadas, no sentido literal, a comemoração de um um importante evento cívico ou militar  por exemplo, como se fazia muito antigamente. O philosophe lisant utilizava os discos provavelmente para segurar as páginas do livro, mas eles também podem ser "lidos ".


Steiner também vai dizer que ao colocar os medalhões diante do leitor,  Chardin está evocando toda uma tradição com base na antiguidade clássica que representaria essa longevidade da palavra.



Chegamos ao momento do ensaio onde é evocado o utensílio mais importante que é a pena do leitor.  Ela está posicionada em frente aos medalhões e a ampulheta em local de destaque no quadro. É com ela que o leitor anota, interage com o texto e através desse diálogo com o que está sendo lido, cria sua própria marginália.  Essas marginálias (anotações à margem ) é a forma do leitor dar sua voz ao texto, às vezes até mesmo corrigindo o texto, e representa a sua responsabilidade diante do livro. A boa leitura não é uma atitude passiva. Ela implica reações, é uma troca, exige um engajamento total com o texto.


Steiner nos diz que "Ler bem é ser lido pelo que se lê. "


E em outra passagem do ensaio ele dirá


"A pena é emblemática da obrigação de resposta inerente ao ato da leitura; define a leitura como interação.  A boa leitura pressupõe resposta ao texto, implica a disposição de reagir a ele, atitude essa que contém dois elementos cruciais : a reação em si e a responsabilidade que isso representa. Ler bem é estabelecer uma relação de reciprocidade com o livro que está sendo lido; é embarcar em uma troca total. (...) É esse engajamento total que resulta nos vários modos de resposta: marginália, anotações breves, correções do texto, emendas, transcrições. Tomadas em conjunto, todas essas respostas geram uma continuação do livro que está sendo lido. A pena atuante do leitor escreve o texto em resposta ao outro."

Essa é uma das passagens que mais gosto no ensaio, quando Steiner define o intelectual como "um ser humano que tem na mão um lápis quando está lendo um livro."


Outro elemento fundamental na ambiência do leitor de Chardin é o silêncio. Steiner fala que na tela do pintor o silêncio chega a ser palpável. A leitura genuína, para Steiner, requer silêncio e solidão,  mas "uma solidão abarrotada de vida."


Todos esses elementos presentes na pintura de Chardin revelam o que o autor chamou de "ato clássico de leitura " e que eu denominei aqui nessa página (inspirada por esse ensaio) , a leitora clássica.


Na segunda parte do ensaio, o autor vai fazer uma comparação com o ato de leitura dos dias atuais. Toda a análise da tela de Chardin representa o seu arcabouço argumentativo para fazer esse contraponto com a nossa contemporaneidade.


"O fenômeno literário de nossa época é difuso e irreverente. Já não é mais uma atitude natural buscar em um livro a orientação que se buscava em um oráculo."

Ele vai falar também sobre diversos outros temas como a falta de espaço para uma biblioteca nas residências modernas, sobre edições econômicas (brochuras), sobre a falta de acesso à obras que já foram marcos culturais, tornando-as restritas demais, sobre essa "demonização" presente na nossa cultura sobre o ato de "decorar".


"Já não mais aprendemos de cor. Os interstícios do nosso saber não comportam ecos, pois estão encalhados de trivialidades estridentes."

E complementa


"Aprender de cor, transcrever fielmente,  ler com toda atenção é fazer silêncio dentro do silêncio. Esse tipo de silêncio, a esta altura da vida contemporânea na sociedade ocidental,  tende a tornar-se um luxo."

E vai encerrar o ensaio falando de um sonho. A criação de uma "escola de leitura criativa" e nos lembra que é preciso insistir na formação de novos leitores e é isso que tento fazer aqui.


Quem sabe um dia eu realize esse sonho por Steiner (seria muita pretensão? hahaha) e junto com vocês fundemos uma "escola" de leitores ao modo de Le Philosophe Lisant.



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patriciamilanis
patriciamilanis
Sep 21, 2023

“Se sonhar um pouco é perigoso, a solução não é sonhar menos, é sonhar mais.” (Marcel Proust)


Ótimo post 👏

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Frase perfeita, né.. Obrigada amiga

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