O conceito de duplo remete à antiguidade e é bastante ligado à psicanálise. Alguns psicanalistas como Sigmund Freud, Lacan e Otto Rank, justificam o duplo e o estranho de diversas formas como, por exemplo, a negação da morte, sendo a alma o primeiro duplo encontrado para tornar a ideia da morte sustentável.
Além desse dualismo entre corpo e alma, Rousseau em Profissão de fé do Vigário Saboiano, traz o dualismo da própria alma como o responsável pela origem do mal enquanto resultado do conflito interno da alma.
Diz-se que esse termo sósia ou duplo foi instituído por Plauto a partir da peça Anfitrião de 194 a.c. Já tem a resenha completa dessa peça aqui no blog.
A peça de Plauto trabalha a concepção de sósia de uma forma diferente dos psicanalistas porque nela não há uma divisão, digamos de maneira bem leiga, da personalidade do ser, o eu, mas uma mera substituição da imagem de um por outro.
Na literatura, o duplo pode ser encontrado de várias formas, uma delas é a mencionada acima como um sósia, mas também poderá aparecer representada na forma de sombra, retrato, espelho, etc.
O que vale ressaltar é que sempre que o "ser original" se depara com seu duplo, a sensação causada é de espanto e horror, uma sensação muito desagradável. E causa esse desconforto por ser familiar, por ser o próprio "eu".
Essa é a forma recorrente de duplo encontrado na literatura. O duplo que desagrega a personalidade do ser, transformando-se em outro de si mesmo.
Mas o que pode causar esse desmembramento do "eu original" em duplo? O descontentamento com o real. A não aceitação da realidade como ela é. A recusa do real faz surgir a ilusão do duplo.
É exatamente isso o que acontece nesta obra de Dostoiévski publicada em 1846.
Nesse livro, através de uma escrita caótica e confusa (desde o início o narrador deixa claro que os pensamentos do protagonista são difusos e fora de ordem), conhecemos o Senhor Yákov Pietróvitch Golyádkin.
Desde o primeiro capítulo sabemos que ele é uma pessoa descontente com a realidade que o cerca.
Golyádkin é um conselheiro titular (cargo de baixo escalão do funcionalismo público russo e sem possibilidade de ascensão social). Mora em São Petersburgo (cenário comum das histórias de Dostoiévski), em um apartamento pequeno , sujo, um local nada agradável.
Ele está despertando de um sono (dos seus desordenados devaneios ) e não sabe se continua dormindo ou se o que está ao seu redor é real. Quando percebe que é a sua realidade, deseja retornar ao seu sono. O sono, para Golyádkin, é uma fuga da realidade.
"(...) se encontrava em algum reino dos confins, mas na cidade de Peterburgo, na capital, na rua Chestilávotchnaya, no quarto andar de um prédio bastante grande, imponente, em seu próprio apartamento. Feita tão importante descoberta, o senhor Golyádkin fechou convulsivamente os olhos, como se lamentasse ter acabado de sair do sono e desejasse retomá-lo por um minuto."
É um dia importante para o protagonista . Ele pretende comparecer a um jantar que acredita ter sido convidado, de aniversário de Clara Olsúfievna, filha única do conselheiro de Estado Beriendêiev e que fora seu benfeitor no passado.
Após juntar dinheiro durante uma vida de trabalho, o Senhor Golyádkin aluga um terno para si, um uniforme (libré) para o seu serviçal Pietruchka, uma carruagem e sai, inicialmente com uma expressão sorridente e em seguida preocupada. Percebe que é observado. No caminho, encontra dois colegas de repartição que ficam perplexos ao vê-lo com aqueles trajes e em uma carruagem elegante. Ele é tomado por uma sensação muito vergonhosa e se encolhe ao canto mais escuro do veículo.
A sua atitude de se esconder é diferente do que se passa em sua mente. Ele diz para si mesmo
"Ora bolas, o que há de estranho aqui? Um homem numa carruagem; um homem precisou estar numa carruagem, então alugou uma carruagem e pronto."
Em seguida, passa por ele um outro veículo. Dessa vez, a do seu chefe da repartição , Andrei Filíppovitch. Aflito e envergonhado, Golyádkin decide se passar por outra pessoa, fazer de conta que não reconheceu seu superior e dizê-lo "não sou eu e pronto."
"Faço uma reverência ou não? Respondo ou não? Confesso ou não? - pensava nosso herói numa aflição indescritível - ou finjo que não sou eu , mas outra pessoa surpreendentemente parecida comigo, e ajo como se nada tivesse acontecido? Isso mesmo, não sou eu, não sou eu, e pronto!"
E na sequência ele diz:
"Fui um imbecil por não ter respondido - pensou enfim-, devia simplesmente ter dito com ousadia e uma franqueza não desprovida de dignidade: sabe como é, Andrei Filíppovitch, também fui convidado para o jantar, e pronto!"
Com isso podemos perceber essa dualidade em sua personalidade desde o começo da narrativa, muito antes do aparecimento do duplo, dois Golyádkins, o da realidade: envergonhado , insignificante, que se esconde dos outros, e o de seu próprio pensamento (seu eu imaginário, idealizado): ousado, corajoso, que diz o que pensa sem receio .
Golyádkin tem um traço de personalidade que é a dificuldade de comunicação e isso interferirá na linguagem da obra. Ele diz que " a primeira frase é sempre a mais penosa". Ele é uma pessoa que se atrapalha constatemente com as palavras. Já o seu duplo, como veremos adiante, é simpático, comunicativo, nutre boas relações com os chefes e é amigo de todos.
Ele repete o tempo todo que não tem habilidade com as palavras, que não é mestre em falar bonito , que não tem estilo, não tem brilho externo e para frequentar a alta sociedade é necessário saber esses artifícios (fazer rapapés, trocadilhos e elogios inebriantes), ou seja, falar sobre futilidades e com hipocrisia.
Apesar dessa discrepância entre como ele pensa e age e em como ele é e como gostaria de ser, ele se considera uma pessoa transparente, que não usa máscaras, enquanto na sociedade é difícil perceber quando a pessoa está mascarada, uma vez que pessoas sem máscaras são raras. Ou seja, todos fingem, mas ele Golyádkin, se mostra puro e verdadeiro.
Se descreve como um homem pequeno e que não lamenta ser pequeno, mas sente orgulho disso. Não age pelas costas, mas às claras. Não prejudica nem humilha ninguém voluntariamente e procura sempre andar em linha reta. Não gosta de meias palavras, de bisbilhotice, abomina calúnia e se mostra sempre como é.
Esse é o Golyádkin por ele mesmo, o qual o narrador chama de "nosso herói".
Eu entendo essa alcunha que o narrador atribui a Golyádkin como que para ressaltar como ele se via em relação à sociedade hipócrita e opressora da época, um herói, um homem sem máscaras, puro de coração, que não arma tramas e não mata ninguém moralmente com fofocas e apesar de ter virtudes e valores não era respeitado em seu meio social.
Pois bem! No caminho do fatídico jantar nosso herói decide procurar o seu médico. O que o médico deseja saber é se o nosso protagonista leva uma vida melancólica ou divertida. Ele diz que o seu tratamento depende de mudança de hábitos, divertimentos, fazer visita a amigos e "não ser inimigo da garrafa", ou seja, se socializar.
Nessa visita ao médico conhecemos outra característica do nosos herói. Ele afirma várias vezes que possui "inimigos", se sente o tempo todo perseguido.
Ao final da consulta, Golyádkin perambula pela cidade como se fosse alguém de fato importante, vai à lojas, negocia mercadorias, até chegar o momento exato de comparecer ao jantar.
Ele chega, finalmente, à residência dos Beriendêiev e é informado que não poderá ser recebido. O estado de espírito do nosso herói era o pior possível nesse momento com a cabeça na mais completa desordem e caos.
Mas ele não desiste e após ficar um tempo escondido, entra no tão sonhado baile. Há uma grande confusão até que novamente nosso herói é retirado de lá e segue sem rumo.
Assustado, desesperado, atormentado, parecia querer fugir de si mesmo.
A noite era chuvosa. Não havia ninguém nas redondezas. Era um momento de trevas exterior e interior. Ele corre em desespero até parar na balaustra do cais. Ele passa um tempo (que não se sabe se foi curto ou longo) na mais completa imobilidade. Ele sente a presença de alguém estranho ao seu lado, mas não vê ninguém. Continua angustiado e inquieto. O instante era muito desconfortável, não sabia o que sentia, se angústia ou pavor.
Ele vê, então, um homem vindo em sua direção. O narrador ressalta que o Senhor Golyádkin, apesar de não nutrir nem ódio nem hostilidade pelo desconhecido, mesmo assim não desejava encontrá-lo por nenhum tesouro do mundo.
Nesse instante, a sensação do Senhor Golyádkin era de estar diante de um abismo aberto que o chamava , um precipício que o arrastava para dentro. É uma sensação de morte interior .
Olhar para o abismo aberto dentro de nós não é fácil, é assustador e poucos têm a coragem de ir em frente.
O desconhecido que causa medo em Golyádkin é ele mesmo, O SEU DUPLO.
A partir desse momento a fronteira entre a realidade e a fantasia é rompida.
O Senhor Golyádkin ficou tão horrizado que se questionou se estava tendo visões, passou a duvidar da própria existência.
Inicialmente, como que seguindo os conselhos de seu médico Crestian Ivánovitch Rutenspitz, Golyádkin recebe o duplo em sua casa, se confraterniza com ele, bebem, conversam. O Senhor Golyádkin deixa de lado o isolamento em que vivia e se abre para o Senhor Golyádkin Segundo (o duplo).
Mas essa fraternidade não dura muito. No dia seguinte inicia-se uma ferrenha disputa entre eles que se arrastará por vários capítulos. O Senhor Golyádkin primeiro (o original) se sente perseguido pelo duplo e tenta de todas as formas aniquilá-lo para recuperar a sua existência de forma integral. Mal sabia que aniquilando-o estaria aniquilando a si mesmo.
O duplo possui todas as características que o Senhor Golyádkin imaginava para si mesmo e aos poucos ele (o duplo) foi se apossando de tudo , tomando o lugar do primeiro.
O Senhor Golyádkin tentou de todas as formas entender o que estava acontecendo e o porquê de todos não tomarem uma providência contra aquele intruso.
Vai da empatia para a repulsa rapidamente. Chama o seu duplo de canalha, vil, pérfido etc.
A disputa entre os dois Golyádkins chega ao extremo. O Senhor Golyádkin é substituído no trabalho, perde seu serviçal e cria em sua mente um romance com Clara Olsúfievna, a aniversariante, filha de Olsufi Ivanovitch Beriendêiev e que dera o baile do qual o protagonista fora expulso no início da narrativa. Nosso herói afunda ainda mais no seu delírio nos capítulos finais.
O final é trágico, porém esperado. Sabemos desde o início que o protagonista é uma pessoa psicologicamente instável e por isso o duplo não poderia existir de fato, mas seria uma criação da mente de Golyádkin, que na minha opinião, ora se comportava como o seu duplo, ora via o seu duplo no rosto de outras pessoas, mas não apenas como uma substituição da imagem como acontece em Plauto, mas como uma projeção de si mesmo que encontra no duplo o seu eu idealizado.
Mas apesar da temática ser interessante, não tive uma experiência de leitura fácil. Em muitos momentos achei o livro enfadonho e arrastado. A escrita desconexa também deixava a leitura confusa e angustiante (me sentia tal qual o protagonista ao final de cada capítulo). A narrativa é repleta de frases incompletas, pensamentos inacabados, repetições sem fim, mas não poderia ser diferente, uma vez que o livro narra as perturbações mentais do protagonista que desde a primeira página sabemos que tem dificuldade de comunicação.
Porém, indico a leitura por abordar um tema basilar na obra de Dostoiévski.
Também assisti ao filme O duplo de 2013 que é levemente inspirado nessa obra e gostei muito. A fotografia, o jogo de cores do filme, conseguiu passar esse aspecto sombrio e os conflitos interiores que ocorriam com o protagonista que, no filme, se chama Simon James. Vale a pena assistir. O final foi bastante modificado em relação à obra original e chegou mais próximo daquilo que eu desejava para o nosso herói Golyádkin.
Há poucos dias finalizei a leitura de um livro "Festa no covil" e no posfácio falava sobre essa questão do duplo presente na narrativa. Aí me lembrei do teu post e voltei para comentar 😆
Naty só de ler tua resenha já senti certa angústia, deve ter sido uma leitura bem desafiadora.
Parabéns pelo excelente post 👏👏