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Niétotchka Niezvânova (Dostoiévski)

Foto do escritor: A leitora ClássicaA leitora Clássica

Essa é uma obra peculiar no conjunto de escritos de Dostoiévski. Primeiramente por ser uma obra inacabada. A ideia do autor era escrever um romance de formação,  mas ao ser preso em 1849, a sua escrita é interrompida quando a protagonista chega aos 18 anos de idade e segundo, por que é o único livro de Dostoiévski narrado por uma protagonista feminina.


A história é narrada em primeira pessoa por Ana Niezvânova, ou como era carinhosamente chamada por sua mãe,  Niétotchka Niezvânova, já adulta.


Niétotchka é o diminutivo de Ana e Niezvânova,  segundo a explicação do tradutor Boris Schnaiderman, é algo derivado de "nada", "criatura sem nome".


São nos dramas da infância dessa "criatura sem nome" e todos os seus conflitos existenciais, seus sofrimentos , a sua orfandade psicológica, os abusos sofridos e os sentimentos nem sempre bons e infantis que habitavam seu coração nessa época que iremos mergulhar na primeira parte da obra.


É, portanto, a narrativa de suas lembranças que na medida em que são revisitadas,  também vão sendo ressignificadas.



Niétotchka vivia com sua mãe e seu padrasto /pai em uma água - furtada pequena e miserável. Há várias referências às características dessa moradia. Isso é comum nas obras de Dostoiévski, onde o espaço físico (geralmente claustrofóbico) representa também o conflito interno da personagem.


As crianças de Dostoiévski protagonizam dramas densos. Não são crianças em sua  ludicidade. Niétotchka Niezvânova não é diferente. Quando criança era calada, pensativa,  entristecida , vivia imersa em seus devaneios, tinha ânsia de entender seus instintos que a fazia oscilar entre o desejo,  a angústia e a culpa, era negligenciada por seus cuidadores e insultada por outras crianças.


Suas figuras paternas viviam em conflito. A mãe, a única provedora do lar, era uma mulher sofrida e infeliz e o padrasto era um violinista que se achava muito talentoso, porém fracassado. Culpava a esposa por seu insucesso, mas era ele próprio quem se autodestruia na sua arrogância, senso de grandeza e nos vícios. Era um homem medíocre, mas com uma visão muito elevada de si. Terceirização da culpa é um traço bem característico da sua personalidade.


Niétotchka tinha um grande fascínio pelo padrasto que acreditava ser seu pai, ou melhor,  paixão como ela mesma nos conta em suas memórias, um sentimento invencível e nada infantil que transformara o pai na sua única fonte de prazer e satisfação, chegando a competir com a mãe pelo afeto desse homem  e por este atribuir seu fracasso pessoal à esposa, Ana passou a nutrir um ódio pela mãe.


O padrasto afirmava que somente quando a esposa falecesse ele teria seu talento reconhecido e a tão sonhada glória chegaria. Ana passa, então, a desejar a morte da mãe para que ela e o pai pudessem viver felizes na casa de cortinas vermelhas,  uma rica mansão em frente a sua pobre residência e que se tornara seu lugar encantado da infância.


Niétotchka idealizava um futuro melhor com o pai onde não haveria pobreza e sobraria amor. Se esforçava por sua aprovação, se satisfazia com pequenas migalhas de afeto dadas quando o pai queria explorá-la e isso a sustentava naquela água - furtada onde pairava uma aflição intolerável e que Ana atribuía, não sem sentimento de culpa, à presença da mãe.


O padrasto/pai percebendo todo esse amor e adoração que Ana tinha por ele, a manipulava, a ameaçava de abandono e a fazia roubar dinheiro da mãe para sustentar seu alcoolismo.


Assim ela nos conta a sua infância, marcada pelo miséria, desamparo, abuso psicológico, desvalorização, abandono e culpa.


A narrativa ganha outro cenário quando a mãe de Niétotchka morre e o homem com quem dividiu a ideia fantasiosa de que suas vidas mudariam quando estivessem finalmente livres daquela pobre mulher, a abandona e  foge.


O abandono de Niétotchka foi uma das passagens mais difíceis de ler. Dilacerou-me a alma.


Poucos dias depois, o homem que Niétotchka tanto venerou morreu vítima da loucura, incapaz de suportar a realidade de que não era aquela pobre infeliz  que o sustentara por anos a culpada por sua trajetória desastrosa, mas ele próprio.


A orfandade psicológica já sofrida pela protagonista se transforma em uma orfandade real.


Abandonada à própria sorte, Niétotchka é acolhida na casa do Príncipe K., a casa de cortinas vermelhas dos seus sonhos de criança.


A casa que abrigava seu ideal de felicidade demonstrou-se soturna , silenciosa e estranha. Seus habitantes, pertencentes à aristocracia,  eram pessoas de hábitos extremamente formais, nada empáticos e pouco afetuosas entre si. A única pessoa da residência com quem Niétotchka tinha uma relação de carinho (ainda que de raro em raro)  era com o próprio príncipe e, posteriormente,  com sua filha Kátia.


Quando Niétotchka conhece Kátia, ela se encanta imediatamente por ela  e comeca a sentir pela princesa a mesma adoração que sentia pelo pai. Há uma espécie de transferência daquele sentimento avassalador e inominável que sentia por aquele homem para a Kátia.


Kátia, por sua vez, era uma criança mimada , orgulhosa e arrogante. Nutria um certo prazer em rejeitar Niétotchka.  Em muitos momentos ela a desprezava e isso deixava Niétotchka aniquilada. Aquele jogo psicológico que a protagonista sofria com o padrasto,  passa a  sofrer com Kátia até que as duas iniciam um romance.


Se pensarmos que a teoria da sexualidade de Freud só foi publicada em 1905 (Três ensaios sobre a teoria da sexualidade), onde ele trata a função sexual como já existente na infância, ou melhor, desde o nascimento e não apenas a partir da puberdade, Dostoiévski em 1849 já trazia um amor erótico entre duas crianças do mesmo sexo.


Fica bem evidente que a relação entre Kátia e Niétotchka era erótica com uma boa dose de sadomasoquismo. Sobre esse aspecto, Freud, na versão original dos seus Três ensaios (1905), vai defender a tese de  que as tendências perversas já fariam parte da sexualidade infantil.


Inclusive, essa inclinação ao sadomasoquismo na infância,  de acordo com Freud,  se daria devido a uma disposição natural à bissexualidade, elementos masculinos e femininos presentes na pulsão do mesmo indivíduo.


Relato isto para termos uma noção do quão revolucionário e  corajoso foi Dostoiévski nessa obra.


A relação entre as duas meninas passa a incomodar a mãe de Kátia que exige o seu afastamento imediato e assim Niétotchka acaba sendo enviada para a sua terceira residência,  a casa do casal Aleksandra Mikháilovna e Piort Aleksândrovitch,  onde foi acolhida por  Aleksandra como uma verdadeira filha.


A vida na casa desse casal era estranha, solitária e triste. Parecia ocultar-se um mistério, um segredo que abalara completa e definitivamente a atmosfera daquele lar.


Aleksandra era uma mulher doce, terna, amava demasiadamente Niétotchka,  cuidou da sua educação, mas a tristeza que escondia no peito foi pouco a pouco tomando conta das suas feições e do seu íntimo levando-a a um enclausuramento interior.


Piort era um homem sério, taciturno, distante,  vivia fechado em si mesmo, inacessível a todos da casa. Niétotchka sentia uma estranha aversão por ele. Já Aleksandra devotava ao marido um sentimento ardoroso que mais beirava a uma dependência emocional do que amor. O marido, por sua vez, mantinha a esposa subjugada por um sentimento de culpa devido um segredo que será revelado na última parte do romance.


Niétotchka viveu com eles por 8 anos. Nos últimos 3 anos o clima na residência ficara ainda mais pesado e a sua benfeitora, que foi a figura que Ana teve mais próxima de uma mãe,  se afastara dela devido seu estado emocional cada vez mais sombrio e triste.


Foi nesse momento que  Niétotchka descobriu inesperadamente algo que mudaria por completo a sua vida, a biblioteca da casa que vivia trancada.


A menina sem nome, sem história, sem raízes, sem pertencimento, encontra finalmente um chão firme aonde pisar e esse chão era a literatura.


" Comecei a ler com avidez e, pouco depois, a leitura absorveu-me completamente.  Todas as minhas novas necessidades,  todos os anseios recentes, todos os impulsos ainda imprecisos da minha adolescência, e que haviam erguido de modo tão inquieto e rebelde em minha alma, suscitados impacientemente por meu desenvolvimento demasiado precoce, tudo foi de repente desviado para outra solução; era como se, plenamente satisfeito com o novo alimento, tudo isso tivesse encontrado um caminho certo."

Não pude deixar de observar, desde o início, o poder terapêutico da escrita em Niétotchka,  que ao recontar suas reminiscências, as mesmas ganham outros contornos e significados. O mesmo aconteceu com a leitura e ela foi como que transportada através das páginas para um mundo por ela desconhecido, o seu mundo interior.


" Agora, a consciência parecia ter-me iluminado de repente toda a minha vida pregressa.  Com efeito, quase cada página que lia parecia-me já conhecida, como se eu já tivesse vivido aquilo há muito; era como se todas aquelas paixões, todo  aquele viver que aparecia diante de mim em formas tão inesperadas, em quadros tão maravilhosos, já tivessem sido experimentados por mim."

Quem nunca se leu através dos livros ? A literatura deu à Niétotchka uma amplitude de conhecimento da vida e de si mesma, fortaleceu sua personalidade e abriu seu coração para a arte, inclusive para a música. Niétotchka descobre seu talento para o canto lírico e passa a receber aulas para aprimorar o seu dom.


Talvez, penso eu, que sua verdadeira mãe não tenha sido Aleksandra,  mas a literatura.


Niétotchka vai crescendo, amadurecendo e passa de uma menina frágil, insegura, submissa, para uma jovem de atitude e enfrentamento. Eu atribuo essa sua jornada de evolução pessoal ao seu contato com os livros. Niétotchka morava em uma casa que raramente recebia visitas, sua benfeitora vivia acamada e o dono da casa uma figura estranha e ausente. Ela própria admitia viver na mais completa solidão. Quem mais, além dos livros, poderia dar-lhe novas perspectivas e repertório de ação?


Niétotchka acaba descobrindo uma carta que revela o segredo que abalava aquela residência. Essa carta é o ponto de intenso conflito entre seus habitantes e também é onde se encerra, abruptamente,  o enredo.


Gostaria muito que Dostoiévski tivesse continuado a obra após sair da prisão, pois seria muito interessante acompanhar o restante do desenvolvimento e amadurecimento de Ana.


Apesar de ser uma obra fluida, não foi um processo de leitura fácil para mim devido a quantidade de temas sensíveis abordados por Dostoiévski.  Uma obra inacabada, mas que acabou comigo diversas vezes.


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2 Comments

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patriciamilanis
patriciamilanis
Mar 15, 2024

Uma pena o autor não ter concluído a obra...

Muito boa tua resenha Naty, me despertou a curiosidade de ler este livro.

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Dostoievski escreveu tanto depois desse e nem pra concluir a história da Ana 😂 so pra judiar dos coitados de seus leitores hahaha, mas até onde a história para dá pra entender como "final"

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