Seguindo com o nosso projeto de leitura conjunta das obras dos principais estoicos romanos, concluímos a leitura do segundo livro, o Encheirídion ou Manual do filósofo Epicteto.
No livro anterior, "Sobre a brevidade da vida" (que já tem resenha aqui no blog), Sêneca nos fala que aquilo que temos de mais valioso é o tempo e por isso devemos ser cuidadosos e zelosos com ele.
Uma vida boa, uma vida bem vivida à moda estoica, para Sêneca nessa obra específica é uma vida não desperdiçada com emoções ruins, nos vícios, nas coisas que não importam.
Já no Manual , o tema central será outro. Para Epicteto , o que temos de mais caro é a nossa mente, os nossos pensamentos, pois são eles que determinam as nossas ações.
Logo, devemos cuidar do nosso pensamento, do nosso interior para alcançar a serenidade estoica, a ausência de perturbação, a tranquilidade da alma e assim, vivermos melhor.
E um dos primeiros ensinamentos presentes no livro é que na vida existem coisas que estão subordinadas a nós (dependem de nós) como por exemplo , o pensamento, o evitar, o desejar, e coisas que não estão subordinadas a nós (não dependem nós) como a opinião alheia, os bens, os cargos, o corpo, etc.
Para alcançarmos a plenitude da vida , a vida boa com liberdade e felicidade, devemos focar naquelas coisas que estão subordinadas a nós e sermos indiferentes ao resto.
"(...)Portanto, diante de toda ideia desagradável apressa-te em dizer: "És uma ideia, e de maneira alguma o que aparentas ser." Em seguida submete-a a exame e teste com base nas regras de que dispões, entre as quais a primeira e principal é aquela segundo a qual se estima se a ideia diz respeito ao que está subordinado a nós ou que não está subordinado a nós; se disser respeito ao que não está subordinado a nós, prontifica-te a dizer: "Nada é com relação a mim."
Esse conceito será repetido ao longo de toda obra, praticamente do 1o ao 53o aforismo, daí a sua importância não apenas para Epicteto, mas para o estoicismo de um modo geral.
Um ponto negativo do livro e que dificultou a minha conexão com o texto foi a escrita. Enquanto o texto de Sêneca, que possui uma linguagem poética, nos estimula à análises profundas, no Manual é tudo dado de forma objetiva, pragmática.
O autor, e aqui cabe um pequeno parêntese para dizer que essa obra não foi escrita por Epicteto, mas por um de seus alunos Flávio Arriano, utiliza uma linguagem seca e direta através de analogias que, para mim, soaram muitas vezes radicais.
Acredito que por Flávio Arriano ser um discípulo de Epicteto (e um historiador da Roma Antiga) e não um filósofo ou um poeta, a sua escrita torna o texto menos reflexivo e redundante.
Mas claro que estou falando da minha experiência de leitura e ninguém é obrigado a concordar.
Eu também não concordo com tudo o que leio, assim como não concordo com tudo que o Manual traz. Aliás, o "concordar com tudo" não me parece uma atitude muito "filosófica".
Um dos pontos do livro que me fazem divergir da filosofia aqui apresentada é esse controle em demasia das emoções, o amor fati estoico da forma como é apresentado por Flávio Arriano, essa resignação diante dos acontecimentos que levam a uma serenidade inabalável, uma aceitação de tudo que pode nos acontecer, inclusive a morte de um filho, a ponto de não nos perturbarmos com isso.
Não me parece muito humano o evitar o sofrimento a todo custo, mas aprender com ele.
Esse aspecto foi ponto de crítica de Nietzsche ao estoicismo em "Além do bem e do mal" (aforismo 9) , onde ele diz que os estoicos veem a natureza de um ponto de vista falso. Essa resignação absoluta e imperturbável seria uma forma de falsear a vida.
Essa forma como os estoicos se relacionam com o sofrimento e que estará presente o tempo todo aqui no Manual deriva da visão que eles tem sobre o que é bom ou ruim. As coisas , para os estoicos, não são nem boas nem más em si mesmas, mas tornam-se boas ou más de acordo com o juízo que fazemos delas. É o nosso julgamento que conta.
Logo, diante da morte de um ente querido (analogia do livro) se pensarmos como nos ensina o Manual que morreu não meu filho ou minha mãe, meu esposo, mas um ser humano e que isso acontecerá com todos os seres humanos não nos perturbaremos com a morte.
É um exercício muito, muito difícil. Uma alternativa é usar outro ensinamento estoico que também está presente em diversas passagens do Manual : " Principie pelas mais ínfimas" , ou seja, comece pelas coisas menores.
O estoicismo é, na minha visão, um caminhar longo e difícil nessa busca por uma vida serena.
Por isso, o Manual traz vários ensinamentos bem ao modo "Vida - modo de usar" para nos auxiliar nessa jornada e que listarei abaixo:
1. Existem coisas que dependem de nós e coisas que não dependem de nós. Só devemos nos preocupar com as primeiras;
2. Devemos, sempre que possível, antecipar mentalmente os acontecimentos. Assim não nos aborreceremos caso eles venham a acontecer;
3. Não são as coisas que nos perturbam. As coisas são o que são. O sofrimento nasce da forma como enxergamos as coisas (nossos pareceres) e não da coisa em si;
4. Autorresponsabilidade: Não devemos atribuir aos outros a culpa pelo nossos infortúnios, mas a nós mesmos, aos nossos pareceres;
5. Não se orgulhe de algo que não é teu;
6. Desapego : Você não perde aquilo que não é teu, mas cuida bem como algo emprestado e não uma posse. Se vier a perdê-lo, não foi uma perda, mas uma restituição;
7. Melhor viver na escassez com tranquilidade na alma do que viver em abundância com a alma perturbada;
8. Ocupa-te daquilo que és capaz, daquilo que está subordinado a ti;
9. Seja solidário com a dor alheia, mas cuida para não interiorizar os seus lamentos;
10. Independente do teu papel no palco da vida, desempenha-o da melhor forma possível;
11. O que devemos desejar é sermos livres e o único caminho para sermos livres é desprezando as coisas que não estão subordinadas a nós;
12. Nos tornamos invencíveis quando conseguimos controlar aquilo que depende de nós (pensamentos, opiniões). Quem não controla as suas ideias / pensamentos é escravo;
13. Ter diante de nós todas as coisas terríveis que possam nos acontecer e estaremos preparados para tudo;
14. Seja firme nos seus posicionamentos e não se deixe abater pela opinião alheia;
15. Quando nos voltamos para o exterior no desejo de agradar os outros, afastamos de nós as estratégias para a direção da vida; afastamos de nós o bem viver;
16. Ocupe apenas os lugares onde puderes se manter digno e respeitável;
17. Somos injustos e imprudentes quando achamos que vale a pena perdermos as coisas boas (virtudes) para obtermos as coisas que não são boas (vícios);
18. Devemos nos considerar merecedores daquilo que fazemos por merecer. Se quisermos receber como um presente algo que exige um preço, seremos ao mesmo tempo insaciável e estupido;
19. Aceita os teus males com a mesma compreensão que dedica aos males alheios;
20. A natureza do mal não é gerada no universo. Uma coisa não é boa ou má em si mesma;
21. Ponderação: Antes de realizar uma ação examina os antecedentes e consequentes dessa ação e só depois pensa em realizá-la;
22. Seja moderado com as palavras, em relação aos bens (sem luxo e ostentação), nos prazeres, nas emoções, no comer, no beber, etc;
23. Tenha um comportamento reservado em tudo que fizeres (sem exibicionismo);
24 . Não fique falando de si mesmo, dos seus feitos ou de suas desgraças;
25. Não cuide em demasia do corpo e esqueça da alma;
26. Tudo tem dois lados ou duas alças. Foque no lado bom que é mais fácil de "carregar";
27. Vigie (esteja atento) aos seus pensamentos e ações;
28. Analisa sempre o teu ciclo de convivência e se afasta das pessoas vulgares;
29. A filosofia é prática de vida e não verborragia de princípios filosóficos.
Esse último tópico é um dos que mais aprecio nessa filosofia e que se origina na influência de Sócrates sobre os estoicos: Não adianta saber filosoficamente, mas viver filosoficamente.
Ótima pela resenha 👏👏👏👏