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Ivánov (Tchékhov)

Foto do escritor: A leitora ClássicaA leitora Clássica

Atualizado: 12 de mai. de 2024

Eu tenho lido bastante romance russo, especialmente devido a leitura de Dostoievski em ordem cronológica.


Decidi conhecer uma outra vertente da literatura russa, o gênero dramático, e comecei pelo mestre das narrativas curtas Anton Tchékhov. 


Tchékhov é muito conhecido aqui no Brasil pelos seus contos, mas ele é também um grande ícone do teatro universal.


Ele dizia que "A concisão é irmã do talento." Nada é supérfluo na sua escrita. Em poucas páginas de um conto ou de uma peça,  ele consegue chegar ao âmago da psicologia de suas personagens porque o que mais se sobressai nos seus textos são os "não ditos". Ele não necessita de grandes explicações para chegar ao seu objetivo.  Muito mais importante é o que está imerso no subtexto.


Existe todo um jogo psicológico que não é aparente e que ficou conhecido como "atmosfera tchekhoviana" .


O drama nasce a partir de estados interiores de suas personagens. É uma narrativa de dentro para fora. Não é a ação que conduz a narrativa, mas a inação.


Por essas características,  Tchékhov foi um escritor que influenciou fortemente ninguém menos que Virgínia Woolf.


Seu material é o homem lidando com sua vida real, prosaica,  cotidiana. Em suas peças, a vida ordinária é o grande tema e não apenas a moldura.



E em Ivánov,  peça de 1887, vemos exatamente isso. Muito mais impactante do que o enredo existente, é o drama íntimo vivido pelas personagens, cada qual à sua maneira, e que vão sendo revelados ao longo da peça entre uma trivialidade e outra: um jogo de cartas, uma conversa sobre a guerra franco-prussiana ou até mesmo sobre culinária.


Ivánov não foi a sua primeira peça longa (tem 4 atos) , mas foi a sua primeira peça encenada.


Ivánov é uma personagem extremamente apática, melancólica e com dificuldade em lidar com o tédio existencial. Ele é dominado por uma profunda angústia que o imobiliza diante da vida.


Em sua juventude, foi ativo, cheio de ideais. Acreditava em coisas diferentes, se entusiasmava com os acontecimentos , se sentia apto a fazer tudo, fazia discursos exaltados, mas agora percebia que havia empregado sua força vital em vão e viu todo esse ardor se transformar em um longo cansaço.


Sua descrição lembrou-me bastante a do "homem supérfluo " de Turguêniev. (Veja aqui a resenha de "O diário de um homem supérfluo.")


Mas Ivánov não se via assim. Para ele, pertencer a essa categoria de "homens supérfluos ", de "Hamlets" , infelizes e inúteis, seria uma grande vergonha.


Ele dirá:


"Eu posso aguentar tudo: melancolia, angústia, ruína, a perda da minha mulher, a velhice prematura, a solidão. Mas não suportaria me sentir ridículo. Morro de vergonha só em pensar que um homem forte e saudável como eu possa se transformar em um Hamlet ou em alguém completamente inútil."

A obra de Shakespeare influenciou bastante na construção desses dois arquétipos fundamentais da literatura russa (o "homem supérfluo" e o "homem do subsolo"),  o que acabou dando origem ao termo "Hamletismo russo".


Ivánov, no entanto,  é de outro tipo.


Ele diz não compreender a si mesmo. Sente uma apatia, uma melancolia, um tédio e um profundo desgosto que não sabe dizer de onde vêm. A culpa é outro sentimento que o acompanha constantemente.


" O que eu tenho? " pergunta Ivánov para seu amigo. Ele responde: "Eu não sei, meu velho. Por um lado, parece que você se deixou abater pela desgraça. Por outro, eu sei que você não é um desses que... Você não é homem de sucumbir. Há algo mais, mas o que... eu não compreendo."


Ivánov responde:


" Nem eu mesmo compreendo."

Em outra passagem ele abordará  o tema da culpa que é algo constante em sua psicologia:


"Dia e noite me dói a consciência e me sinto profundamente culpado...Mas não chego a compreender por quê. "

Ele é casado com Anna Petróvna (antes do casamento se chamava Sara Abramson) que está muito doente. O médico diz que ela tem pouco tempo de vida e sugere um tratamento na Crimeia que Ivánov , por estar com problemas financeiros, não tem condições de arcar.


Ivánov não se abala ao receber essa notícia. Sua impassibilidade é tão grande que ele diz não sentir nem amor nem pena. Só um enorme cansaço e um profundo vazio.


É por agir assim, diante da notícia da morte iminente da esposa, e também por deixá-la sozinha todas as noites, que o médico Lvov, o considera um egoísta, insensível e frio. Em resumo, um grande canalha.


Ele e Anna Petróvna estão casados há 5 anos. Anna diz que nem sempre o marido foi assim. Ele era alegre, engraçado, disposto a tudo e há 1 ano se tornara uma pessoa indiferente à vida.


Ivánov, por sua vez, diz que quando esses momentos de intensa melancolia surgem, ele deixa de amá-la e precisa fugir para longe dela, mas reconhece que para onde quer que vá, carrega consigo o tédio, o desânimo e a insatisfação.


Mas ele não é o único a sentir esse tédio. De uma forma ou de outra, todas as personagens lidam com a vida de maneira entediada.


Há também uma perspectiva social e política. 


Com Ivánov, por exemplo, mora seu tio, o Conde Chabélski. Ele é um representante da decadente aristocracia rural e diz que , no seu caso, o tédio surge da indiferença das pessoas. Antes, quando tinha dinheiro e influência, era respeitado,  ouvido, e agora que se tornara "um parasita", "um encostado", se transformara em um ser invisível aos olhos dos outros.


Anna também vive seu drama existencial. Está tuberculosa, não consegue compreender porque o marido a evita, se sente abandonada,  deseja rever os pais que não vê desde que casou com Ivánov,  pois como é judia, foi deserdada pela família por ter casado com alguém de fora da religião.



Para fugir do vazio que o consome, Ivánov vai com frequência para a casa de seu amigo dos tempos da universidade,  Liébedev.


Liébedev é casado com Zinaída (uma agiota que só pensa em dinheiro) e pai de Sacha.


Sacha é uma linda jovem que irá protagonizar com a Ivánov o drama secundário da peça.


Sacha é apaixonada por Ivánov. Deseja casar com ele. Quer salvá-lo dele mesmo, como se isso fosse possível. 


Inicialmente, Ivánov sente um ímpeto de alegria e entusiasmo, mas logo em seguida a apatia o derruba de forma ainda mais lancinante.


"E essa menina, Sacha, comovida com a minha desgraça, me fez uma declaração de amor. A mim, quase um velho. E fico embriagado, me esqueço de tudo, como encantado por uma música, começo a gritar: " Vida nova, felicidade!" E no dia seguinte não acredito mais nessa vida nova nem nessa felicidade."

Ele fará uma análise perfeita sobre o sentimento de Sacha:


"Desista de mim! Você não é movida pelo amor,  mas pela obstinação da sua natureza pura. Você se propôs a devolver-me a vida custasse o que custasse . Você estava pronta pra cumprir um ato heroico. Agora, você quer recuar, mas um falso sentimento não a deixa. Entende?"

Não acredito que Sacha ame Ivánov. Ela tem uma lembrança do passado. Associa a sua imagem às alegrias da sua infância. Não é o mesmo Ivánov que ela se apaixonou quando criança que agora tem diante de si, por isso Ivánov fala que um "falso sentimento " não a deixa recuar. Sem contar que ela encarna também o perfil da "salvadora" do homem decadente.


Anna acaba descobrindo as intenções de Sacha e seu estado de saúde se agrava.


O médico de Anna culpa Ivánov por sua piora. Persegue-o , acusa-o, o difama publicamente,  em nome de uma grande honestidade e senso de dever.


"Uma honestidade sem misericórdia", como disse o conde.

Ele não é uma pessoa má, mas é uma pessoa rígida. Tem uma necessidade de apontar canalhas e desmascará-los socialmente e como não compreende as pessoas está sempre com seu dedo em riste.


Ivánov irá dizer exatamente isso:


"Um homem pode ser um excelente médico e não entender as pessoas."

E confesso que comungo da mesma opinião de Anna:


"Talvez o senhor seja honesto, mas é desagradável."

Quase no final da peça, a angústia de Ivánov chega ao ápice de tal forma que, através de um monólogo íntimo inflamado e sincero, ele nos revela tudo que o atormenta dia e noite.


E o que o atormenta é a falta de compreensão de si. Ele, como já foi dito, não entende no que se transformara. Ele, um nobre, inteligente,  saudável, se vê abatido, sem vitalidade, sem força de vontade. Se vê esgotado,  desiludido,  com vergonha da própria fraqueza.


"Como sou miserável! Como me desprezo, meu Deus! Como detesto minha voz, meus passos, minhas mãos, essas roupas, esses pensamentos. Há um ano eu era saudável e forte, vivo, incansável, apaixonado. Trabalhava com essas mãos e falava tão bem que chegava a comover até os mais indiferentes. Chorava diante da dor, me indignava com a maldade. Sentava na escrivaninha e, inspirado pelo encanto e pela poesia das noites calmas, trabalhava até o amanhecer ou apenas sonhava. Eu tinha fé e olhava para o futuro como se olhasse nos olhos da mãe. Mas agora, meu Deus! Vivo cansado, sem fé e passo meus dias na ociosidade. Meu cérebro, meus braços, minhas pernas não me obedecem mais. Minha propriedade vai falir, a floresta está sendo derrubada. Minha terra me olha órfã. Eu não tenho mais esperanças. Minha alma morre de medo do amanhã. (....) Que abismo é esse em que me joguei? De onde vem essa fraqueza ?"

Também para Liébedev,  pai de Sacha, Ivánov deixará transparecer esse ser submerso no abismo, no vazio, no nada.


"Eu era um jovem inflamado, sincero e inteligente... Amava, odiava e acreditava em coisas diferentes dos outros. Trabalhei e esperei por dez anos, lutei moinhos de vento, bati a  cabeça na parede, sem medir forças, sem pensar, sem conhecer a vida, carreguei um fardo muito pesado sobre as minhas costas que vergaram. Minhas veias saltaram. Eu tinha pressa de fazer tudo enquanto era jovem, me embriagava, ficava excitado, sem limites. (...) E agora, a vida que eu desafiei, se vinga. E me sinto arrasado. Aos trinta anos já era velho, já usava chinelos, cansado, moído, quebrado, sem fé, sem amor, sem objetivo e sem saber quem eu sou. Eu já começo a achar o amor uma bobagem,  o carinho enjoativo, o trabalho sem sentido, as canções e os discursos apaixonados banais e velhos. E onde quer que eu vá,  carrego comigo a minha angústia, o meu vazio, o meu desprezo pela vida."

Liébedev, em resposta, vai dizer que Ivánov é "uma vítima do seu meio". Com essa fala, Tchékhov introduz na peça a questão do determinismo social, algo que também será criticado por Dostoievski em Memórias do subsolo.


No fim  das contas, Ivánov sucumbiu ao peso das próprias desilusões. Reconheceu a mediocridade de suas ações, não via saída para si. Toda a força vital gasta exaustivamente na juventude de nada serviu.


Para ele, a vida sempre em tons cinzas, monótona, banal, porém constante, sem grandes exaltações, mas também sem quedas bruscas, é a vida que vale a pena ser vivida.


A dele foi cansativa demais e, no final, acabara por representar o papel de "Hamlet" e "supérfluo" que ele tanto temia.


Para mim, ele se transformara também em um niilista. Em um homem esvaziado, sem forças, desprezando a vida, resignado ao nada.


A tragédia do final é a tragédia do niilismo.


Se a vida não tem sentido , porque vivê-la?  É isso que passa na cabeça de Ivánov na cena final da peça.


E fim.



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2 Comments

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patriciamilanis
patriciamilanis
May 13, 2024

Ótima resenha Amiga!

Naty eu lendo essa frase "Aos trinta anos já era velho..." é pensando que esse mês completo trinta anos 😅😂


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Kkkkk e eu com 46 amiga... uma verdadeira anciã 😂

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