O canto I da Ilíada inicia com o seguinte trecho:
" Canta-me a cólera - ó deusa! - funesta de Aquiles Pelida, e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados e como pasto de aves. Cumpriu-se de Zeus o desígnio desde o princípio em que os dois, em discórdia, ficaram cindidos, o de Atreu filho, senhor de guerreiros, e Aquiles divino. Qual, dentre os deuses eternos, foi causa de que eles brigassem? O que de Zeus e de Leto nasceu, que, com o rei agastado peste lançou destruidora ao exército." (Tradução Carlos Alberto Nunes).
Fica, assim, evidente que o poema de Homero não trata da guerra de Tróia em si, uma vez que já inicia com a discórdia entre "o de Atreu filho" que é o líder o exército grego, Agamémnon, que também pode ser referido no poema como atrida (filho de Atreu) e Aquiles que tem o epíteto "de rápidos pés" , filho da deusa do mar Tétis com o mortal Peleu e por isso também é referido no poema como pelida (filho de Peleu).
Mas qual foi a causa da desavença entre os dois que teve como consequência a morte de muitos gregos?
Para responder a essa pergunta é preciso retornar aos acontecimentos muito anteriores aos narrados na Ilíada e também conhecer a história de Aquiles e o porquê dele ser tão importante para que os gregos alcancem êxito no conflito contra os troianos.
A fundação de Tróia originou-se de Dárdano (Filho de Zeus). Zeus possuía dois filhos: Jasão e Dárdano. Jasão foi morto pelo pai e Dárdano decide ir embora após a morte do irmão.
Dárdano foi acolhido pelo Rei Teucro e fundou um povoado de nome Dardânia e seu povo ficou conhecido como "dárdanos" ou "dardânios"
Dárdano foi sucedido por seu filho Erictônio e este por seu filho Trós. Assim, a região ficou conhecida como Trôade e a sua capital de Tróia. Os dárdanos , então, passaram a ser chamados de troianos ou troios.
Trós foi sucedido pelo seu primogênito Ilo. Ilo construiu uma fortificação chamada de Ílion ou Pérgamo.
Assim, o povoado passou a ser chamado de Tróia, Ílion ou Pérgamo.
Mas foi Laomedonte, filho de Ilo, quem construiu a muralha de Tróia para que a cidade tivesse defesas invencíveis com a ajuda dos deuses Febo Apolo e Posídon com a promessa de recompensas.
Ocorre que Laomedonte não era uma pessoa honesta e quando a muralha ficou pronta não deu as recompensas prometidas aos deuses . Sendo assim, Apolo e Posídon se tornaram inimigos dos troianos.
Como vingança dos deuses, um monstro marinho começou a devorar Tróia e o rei entregou a sua filha Hesíone à morte e esta acabou sendo salva por Héracles e entregue para Télamon que era grego e se tornou sua esposa.
O rei Laomedonte foi sucedido por seu filho Príamo. Príamo se casa com Hécuba e nasce o primogênito do casal, Heitor.
Hécuba engravida novamente de Páris, mas este acaba sendo abandonado pelos pais devido a uma profecia de que Páris causaria a destruição de Tróia.
Páris acaba sendo criado pelo escravo Agelau como seu filho sem saber a sua verdadeira história.
Um dia, Páris é abordado pelas deusas do Olimpo (Hera, Palas Atena e Afrodite) e pedido que ele elegesse a mais bela. Cada uma das deusas prometeram vantagens à Páris caso fosse a eleita.
Páris elege Afrodite, a deusa do amor, a mais bela de todas e esta lhe promete uma bela esposa como recompensa, a mais bonita da terra.
Tempos depois, Páris participa de um torneio em Tróia e vence. Acaba sendo reconhecido por sua irmã Cassandra e acolhido no castelo por seus pais Príamo e Hécuba que , de tão felizes ao rever o filho, não lembraram da antiga profecia.
Príamo nunca esqueceu o rapto da irmã Hesíone por Héracles. Seu filho Páris pede ao pai permissão para ir até a Grécia recuperar sua tia Hesíone. O pai concede e Páris parte para Grécia.
Ao chegar em Esparta, Páris se apaixona por Helena (rainha de Esparta) , esposa de Menelau que, por sua vez, é irmão de Agamémnon.
Páris recordando a promessa de Afrodite , acredita que Helena é a escolhida e resolve raptá-la.
Páris e Helena se casam e anos depois retornam à Tróia.
Helena casa-se voluntariamente com Páris.
Menelau, rei de Esparta e esposo traído, pede auxílio do irmão Agamémnon. Este, convoca os príncipes da Grécia para a guerra contra Tróia.
Daí decorre o conflito entre gregos e troianos, do rapto de Helena por Páris que esquecido da sua missão na Grécia, acaba por levar a destruição a sua Pátria.
O vidente Calcas informa a Agamémnon que Aquiles é indispensável para a vitória grega. Até então, ninguém sabia onde Aquiles estava, mas Calcas que sabia a sua história e seu paradeiro o denuncia. Agamémnon manda Odisseu ir em busca do herói .
Mas por que Aquiles era tão necessário à vitória dos gregos? Também devido a uma profecia.
Aquiles era filho filho de Peleu com a deusa do mar Tétis. Quando Aquiles tinha 9 anos , o vidente Calcas declarou que a longínqua cidade de Tróia, na Ásia, só poderia ser conquistada com o menino . Sabendo que essa batalha traria a morte para seu filho, Tétis entra sorrateiramente no castelo do marido, veste Aquiles de menina e entrega-o ao rei Licomedes que o criou como menina entre suas filhas.
Com a visita de Odisseu e Diomedes em nome de Agamémnon, Aquiles acaba desmascarado e entrando na guerra.
Do lado dos gregos, Agamémnon, Aquiles, Odisseu, Ajax e vários príncipes da Grécia e do lado troiano outros guerreiros liderados por Heitor e Eneias.
A guerra contra Tróia já tem durado muitos anos quando a Ilíada inicia , mais precisamente no 10o ano do conflito .
No decorrer desse anos, Aquiles destruiu e saqueou 12 cidades com suas tropas. Em uma dessas batalhas (contra Tebas), Aquiles sequestra a filha do sacerdote Crises , Criseida, e a filha do rei Briseu, Briseida.
A filha de Crises é dada a Agamémnon como presente de guerra e Briseida permanece com Aquiles como sua presa predileta.
O sacerdote Crises , tentando resgatar sua filha, vai até o acampamento dos gregos que também podem ser chamados de dânaos, argivos, acanensses (em relação ao nome Acaia, antigo nome da Grecia) e helenos.
O sacerdote oferece pagamento de resgate dado pelo deus Apolo , mas Agamémnon recusou e ainda expulsou Crises do local.
Desesperado, o sacerdote recorre ao deus Apolo e é ouvido. O deus resolve se vingar dos gregos através da peste.
Em Teogonia de Hesíodo, o epíteto de Apolo é "o que defere golpes " , atribuindo um caráter vingativo e de golpes mortais ao deus.
Aquiles que não entendia a fúria do deus contra os gregos, decide convocar uma assembléia e o vidente Calcas, em troca da proteção de Aquiles, diz a verdade ao filho de Peleu, que a peste só cessará quando a filha de Crises retornar para casa.
É nesse ponto que inicia a desavença entre Aquiles e Agamémnon narrada no início do poema.
Agamémnon concorda em devolver a filha do sacerdote, mas diz que não ficará no prejuízo e exige outro presente em troca e decide tirar Briseida de Aquiles.
Aquiles se sente ferido e desrespeitado e decide deixar o exército grego.
A filha de Crises foi devolvida e a peste cessou. Porém, Tétis (mãe de Aquiles) pede a Zeus que conceda a vitória aos troianos até que os gregos demonstrem novamente respeito por seu filho.
É nesse ponto do conflito que se inicia a Ilíada, que narra não a guerra de Tróia, mas às consequências da ira de Aquiles para o povo grego e para ele mesmo.
Além da narrativa da Ilíada começar no último ano do conflito entre gregos e troianos , Homero retoma os acontecimentos anteriores o tempo inteiro no poema e essa é mais uma razão para conhecermos esses fatos.
Uma outra dica importante para quem quer iniciar a leitura do poemas épicos de Homero é, além de conhecer os fatos anteriores aos narrados na Ilíada, ler também a obra Teogonia de Hesíodo.
Em Teogonia conhecemos a origem dos deuses, seus epítetos (termos associados ao nome para qualificá-lo como, por exemplo, Pelé, rei do futebol - rei do futebol é um epíteto de Pelé), bem como a hierarquia desses deuses da mitologia grega.
No final do canto I da Ilíada, por exemplo, tem-se referência às musas.
"Todos, prazer encontravam na lira admirável de Apolo, quando , com as musas , com voz deliciosa, alternados cantavam. "
As musas são o primeiro ponto tratado em Teogonia. Filhas de Zeus, são divindades que habitam o Monte Helicon. Elas nasceram para o alívio dos males e descanso das inquietações e são responsáveis por colocar palavras doces na boca dos humanos.
Como Homero escreveu a Ilíada para pessoas que conheciam os mitos, estes não são narrados no decorrer da obra e por isso faz-se necessário um conhecimento prévio sobre a mitologia grega para melhor aproveitamento da leitura. Por isso a minha indicação é começar a preparação para a leitura de Ilíada por Teogonia de Hesíodo.
Sobre o poema épico Ilíada em específico e sobre as questões homéricas, bem como outras indicações de leituras de apoio, trataremos em outros posts futuramente.
Excelente post Naty, muito explicativo 👏👏👏👏
Já anotei a dica de leitura aqui 😉