"... E o insensato quer tormenta, como se nela houvesse paz!" (Liérmontov)
No livro Aulas de literatura russa (De Púchkin a Goresnstein), a professora Aurora Bernardini vai definir Tolstói como " o mestre insuperado do gênero que se acostumou chamar romance psicológico do século XIX. "
O romance psicológico é aquele que tem a narrativa centrada na consciência individual de uma personagem. Geralmente é narrado em primeira pessoa e o olhar apresentado é com base na interioridade desse narrador.
E é exatamente o que temos em Felicidade conjugal, primeira novela do escritor russo Lev Tolstói publicada em 1859 na revista O Mensageiro Russo , em duas partes.
Nessa novela, conhecemos a história de Mária através do desnovelamento de suas memórias.
A narrativa é centrada totalmente nos sentimentos, sensações, emoções vividas pela personagem que nos conta como conheceu e se apaixonou por aquele que viria a ser seu futuro marido, Sierguiéi Mikháilitch, um homem mais velho (com quase o dobro da sua idade) e que era amigo de seu falecido pai.
Mária é uma jovem de 17 anos que acaba de se tornar órfã. Mora no campo, em uma pequena propriedade rural com sua irmã mais nova Sônia, alguns empregados e sua governanta Kátia.
A narrativa já começa descrevendo emoções e não lugares ou pessoas. As descrições revelam sempre estados de alma.
" Estávamos de luto por nossa mãe, que morrera no outono, e eu passei todo o inverno no campo, a sós com Kátia e Sônia. (...) Parecia-me sentir ainda a morte naquela casa; a tristeza e o horror da morte pairavam no ar."
Mária, naquela época, se sentia angustiada e vazia. A vida no campo a deixada entediada e sem perspectiva. Acreditava que passar mais uma temporada no campo era desperdiçar a vida.
Se julgava jovem e bonita. Queria ser apresentada à sociedade (algo que não foi possível com a morte da mãe). Todos esses sentimentos de aflição e solidão habitavam o coração de Mária quando ela reencontrou Sierguié Mikháilitch.
"Quando Kátia procurava convencer-me a ocupar-me disso ou daquilo, eu respondia: não quero, não posso, e em meu íntimo, algo dizia: para quê? Para que fazer alguma coisa, quando o meu tempo se perde em vão? Pra quê? E não havia respostas a este para quê a não ser as lágrimas."
Assim, ela e a irmã passavam os dias a aguardar a chegada do tutor que cuidaria da situação financeira das órfãs e eis que ele chega, seu antigo vizinho, amigo de seu pai, uns bons anos mais velho que ela, um homem que a conhecia desde criança, mas com quem não tinha contato há muito tempo, Sierguiéi Mikháilitch.
Ela se encheu de esperanças com a chegada do tutor porque como ela mesma dizia
" A vinda dele alterava nossos planos e dava a possibilidade de deixar a roça."
Ela sentia por ele um gostar infantil, por hábito, já que todos da casa , inclusive os empregados, o admiravam.
Sierguiéi passava muito longe do ideal de homem que Mária imaginava para marido. Homem este que ela, talvez, tivesse conhecido se tivesse sido introduzida na sociedade como era o desejo da mãe.
" O meu herói era todo diferente: magro, descarnado, pálido e tristonho. E Sierguiéi Mikháilitch era um homem já entrando em anos, alto, corpulento e, como me parecia, sempre alegre."
Mas os sentimentos de Mária vão se transformando ao longo das visitas de Sierguiéi e nessa primeira parte da novela é isso que acompanhamos, o desabrochar desse amor que de fraterno e paternal se transforma em "entusiasmo selvagem".
" Agora, ele era já para mim não alguém brincalhão e alegre, que me provocava e fazia gracejos, mas um homem sério, singelo, capaz de amor, e por quem eu sentia involuntariamente respeito e simpatia."
Mária passou a se moldar totalmente à Sierguiéi. Fazia de tudo para que ele também a enxergasse como uma mulher digna de amor por ela mesma e não por ser a "garotinha" filha de seu amigo. Cedeu completamente a sua individualidade, doou todos os seus gostos e desejos em nome de uma aceitação, em nome de algo que ela acreditava ser amor.
"Grande parte dos meus hábitos e gostos anteriores não lhe agradavam, e bastava que ele mostrasse, com um movimento das sobrancelhas ou com um olhar, desagradar-lhe aquilo que eu pretendia dizer, bastava que apresentasse a sua expressão peculiar, lastimável, quase desdenhosa, e eu tinha já a impressão de não gostar mais daquilo que eu gostava antes."
E em outro trecho ela reforçará essa relação de dependência e fragilidade
" Todos os meus pensamentos, todos os meus sentimentos de então não eram meus, eram pensamentos e sentimentos dele, que de repente se tornaram meus."
Sierguiéi era um homem já vivido e não tinha mais as ilusões no amor. Era relutante em relação a esse sentimento que também foi surgindo nele por Mária. Acreditava que o ideal de felicidade era viver para outrem.
Era um homem altruísta, defensor dos camponeses assim como Tolstói.
Aliás, Tolstói acreditava na literatura como uma possibilidade de transmissão de valores e suas obras estão permeadas desses valores.
Sierguiéi me passou a impressão de ser quem na obra expressa a verdade defendida por Tolstói, o viver para outrem, a procura do bem, a superação do individualismo pelo altruísmo.
Sobre os camponeses, Sierguiéi vai dizer que
"Este povo é magnífico em toda parte. Quanto melhor a gente o conhece, mais gosta dele."
Tolstói era considerado pela crítica como "escritor à tese". Sua literatura reflete esse esforço, como explica a professora Aurora Bernardini em seu já mencionado livro, de "na sua obra literária reunir ambos (instinto e razão) através de uma ideia dominante (tese) que é demonstrada passo a passo, por gradação e contraste, sendo a arte o fluído que juntas as partes e contamina o leitor ".
É exatamente o que acontece em Felicidade conjugal.
Sierguiéi lutava contra o amor que sentia por Mária porque sabia que ela, por ser jovem e inexperiente, ainda tinha muito o que viver e amadurecer para que entendesse de verdade e quisesse por ela mesma viver com ele a vida feliz que ele imaginava e que tinha moldes muito claros.
" Vivi muito e tenho a impressão de que achei o necessário para a felicidade. Uma vida quieta, solitária, em nosso rincão distante, com a possibilidade de fazer o bem às pessoas, o bem tão fácil de fazer por elas, que não estão acostumadas com isso; depois o trabalho, um trabalho que aparentemente traz proveito; e ainda o repouso, a natureza, os livros, a música, o amor à alguém próximo - eis a minha felicidade, acima da qual nada sonhei."
E complementa dizendo
" Você ainda não viveu, você talvez queira ainda procurar a felicidade em outras coisas, e talvez a encontre nelas. Agora tem a impressão de que isso é felicidade, porque me ama."
Mas ele acaba vencido por esse sentimento. Eles se casam pouco tempo depois.
A segunda parte dessa novela traz o que vem depois do sim, do "felizes para sempre " . É a desconstrução dessa idealização que temos sobre o casamento, sobre a vida conjugal e do que viria a ser felicidade a dois.
Já casados, Mária e Sierguiéi passam a viver na propriedade de sua mãe, Tatiana Siemiônovna. A família vivia de forma harmônica, cada um no seu papel.
Mas a lua de mel durou pouco e logo apareceram os desalinhos. Mária continuava vivendo em função daquele relacionamento cedendo por completo a sua parcela de vida própria. Ela acreditava no amor como um sacrifício atroz.
" Minha vida decorria como antes. Eu lia , ocupava-me da música, da mãe dele, da escola; porém tudo isso unicamente porque estava relacionado a ele e merecia a sua aprovação; mas bastava o pensamento nele não se acrescentar a alguma tarefa, as minhas mãos descaíam e parecia-me tão divertido pensar que existia no mundo algo além dele. (...) e justamente por isso eu não conseguia viver para mais nada, com exceção dele, só vivia para ser aos seus olhos aquilo que ele esperava de mim."
E como quem tudo dá, fica de mãos vazias, aquela vida rapidamente passou a não ser mais a vida sonhada, aquele entusiasmo selvagem foi perdendo força e Mária começou a perceber que aquela felicidade conjugal não era tudo, que existia algo mais e ela queria esse algo mais.
" Sentia-me bem, mas ao mesmo tempo, tinha a impressão de que, embora tudo isso fosse assim, existia em alguma parte uma outra felicidade, ainda que não maior."
Mária queria uma vida de entusiasmos, queria a eterna novidade. A rotina passou a afetá-la e o tédio se instalou completamente em seu coração.
Sierguiéi, por sua vez, passou a se ocupar cada vez mais com o trabalho, com os problemas da propriedade, se viam pouco. Era como se ele tivesse um mundo à parte e Mária fosse infantil demais ou delicada demais para pertencer a ele.
Ela se sentia acessória na vida do esposo, sentia tédio . Desejava uma vida diferente. Aquela pacata felicidade campestre não a preenchia mais.
" Amar era pouco para mim, depois que eu experimentara a felicidade de apaixonar-me por ele. Eu queria movimento, e não uma fluência tranquila da vida."
Tentando trazer a satisfação de volta para a vida da esposa, Sierguiéi propõe levar Mária para Petersburgo. Um novo mundo se abriu para ela imediatamente.
Ela foi tomada por um deslumbramento instantâneo. Os bailes, os teatros, os jantares , a vida em sociedade que ela não pôde gozar devido a morte da mãe, tudo a envolveu de tal forma e ocupou todo o seu coração.
Nesse instante um abismo se abriu entre eles.
O diálogo se limitou , a intimidade foi perdida. A aparência, a máscara social era o que os mantinham ali.
" Ambos evitávamos conversas diretas sobre esses temas e, fazíamos juízo falso um sobre o outro. (...) Nossas relações transfornaram-se tão imperceptivelmente que nem o notamos. "
Mas para Mária aquela vida a dois era a única possível. Nem mesmo a maternidade (algo que Tolstói fala de uma forma extremamente humana) devolveu ao seu íntimo aquela satisfação e sensação de completude e bem estar.
Se jogava cada vez mais e mais nesse universo de superficialidades da cidade (esse tema da vida feliz no campo x a vida frívola da cidade é recorrente em Tolstói) , e focava no externo , no quanto era admirada , desejada e um "abismo de delícias proibidas" a seduzia sem arrefecer.
O risco em escolher o efêmero ao duradouro é que o arrependimento é uma parada obrigatória no percurso da vida e "lágrimas maldosas e não choradas " são inevitáveis.
A pergunta é: tudo pode ser reconstruído? É possivel transpor o abismo ? É possível voltar a crer que a felicidade é viver pra outrem? E se não for possível, há culpados? Há um só culpado?
Sierguiéi responde por mim com a frase
" Nisso tem culpa o tempo e nós mesmos."