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Escute as feras (Nastassja Martin)

Em 2023, mais especificamente devido à Proust, me interessei por estudar sobre o pensamento de Walter Benjamin e assim que iniciei a leitura de "Escute as feras", Benjamin se infiltrou em minha mente com seu conceito de "limiar" e "rito de passagem".


"Rito de passagem - assim se denominam no folclore as cerimônias ligadas à morte, ao nascimento, ao casamento, à puberdade etc. Na vida moderna, estas transições tornam-se cada vez mais irreconhecíveis e difíceis de vivenciar. Tornamo-nos  muito pobres em experiências limiares. O adormecer talvez seja a única delas que nos restou." (Walter Benjamin)

Rito de passagem. Foi isso que senti ao iniciar a leitura do relato, em 1a pessoa, da antropóloga francesa Nastassja Martin sobre um ataque de um urso que ela havia sofrido quando esteve nas montanhas de Kamtchátka para estudar os "even" (povo indígena da Sibéria e extremo leste da Rússia que vivem nas florestas siberianas).


Mas antes de iniciar a minha resenha sobre a obra, gostaria de continuar em Benjamin porque há uma diferença essencial que ele aponta entre LIMIAR e FRONTEIRA (que tendemos a utilizar como se fossem a mesma coisa) e que se faz necessária expor aqui , porque como veremos, a experiência da antropóloga nas montanhas foi, sem dúvida, uma experiência limiar.


A fronteira lembra uma delimitação que não pode (ou não deve ) ser ultrapassada. Lembra uma separação. O limiar não significa apenas a separação entre dois domínios (no caso de "Escute as feras", o humano e o animal). O limiar é um "entre ", uma zona intermediária, muitas vezes sem demarcações claras e precisas como ocorre na fronteira.


O limiar, para Benjamin,  lembra fluxos e contrafluxos. Lembra ponte, transição. Ritos de passagem.



Em seu relato, a autora divide a obra em 4 capítulos curtos de acordo com as estações do ano: outono, inverno, primavera e verão.


Ela inicia sua narrativa pelo outono e nos descreve como foi o ataque do urso, seu período de internações hospitalares,  sua sobrevivência, e nos diz o seguinte:


"O urso, a essa altura, já se foi há muitas horas, e eu espero, espero a bruma se dissipar. A estepe está vermelha, as mãos estão vermelhas, o rosto intumescido e dilacerado já não é o mesmo. Como nos tempos do mito, é a indistinção que reina, sou essa forma incerta de traços desaparecidos sob as brechas abertas no rosto, coberta de humores e de sangue: é um nascimento,  pois claramente não é uma morte."

Para os evens, Nastinka ou Nástia como é chamada, ao sobreviver ao ataque da fera se transformou em uma "miêdka" , aquela que vive ENTRE os mundos. Limiar e não fronteira.


Essa conexão entre os dois universos pode ser retratada pelas cicatrizes deixadas em sua face desfigurada e o pedaço do seu maxilar que ficou com o urso. Também se observa através dos sonhos de Nástia, sonhos que são dela e do urso ao mesmo tempo.


Não há mais delimitação entre o humano e o animal. Entre o bárbaro e o civilizado. É tudo fluxo e contrafluxo. Limiar.


Ela fala dessa sua experiência pessoal como um "destino inescapável" , como algo pré determinado,  como se não fosse possível fugir desse encontro que a tornaria "outra", ignorante de si própria.


"Não pareço mais comigo mesma,  minha cabeça é uma bola arranhada por cicatrizes vermelhas e inchadas, por pontos de sutura. Eu não pareço mais comigo mesma e, no entanto, nunca estive tão próxima da minha compleição anímica; ela se imprimiu em meu corpo, sua textura reflete ao mesmo tempo uma passagem e um retorno."

Quando mundos distintos se chocam,  quando há contato de um com o outro, não se pode voltar ao estado de antes , ou como a narradora fala recorrentemente, a vida de antes. O corpo se torna híbrido. Metade humano, metade fera. A vida metamorfoseia-se.


É preciso aceitar que a fera vai passar a habitá-la juntamente com outros seres ainda desconhecidos.  É tudo ela agora. Mas também não  é apenas "ela".


Após um período de tratamento na Rússia, a antropóloga é transferida para um hospital na França. Nesse ponto do relato, a autora levanta outro ponto de discussão: é preciso remover a placa colocada em seu maxilar por ser russa (e por isso, não confiável). Como se isso representasse alguma coisa, já que Nástia trazia no corpo algo que não poderia ser removido, algo que a habitaria para sempre.


Na França, seu corpo grita com infecções. Ela passa por diversos procedimentos cirúrgicos para conter os micro-organismos, que parecem tão ameaçadores quanto o urso, ou até mais, por serem invisíveis. O invisível sempre nos assusta mais, não é? Tenho essa impressão.


Mas seu corpo reage. Após uma luta árdua contra "a coisa que o urso deixou nela", finalmente ela retorna à casa da mãe na França para continuar seu processo de recuperação.


Nesse retorno, fica ainda mais nítida a ideia de limiar que estamos conversando desde o início dessa resenha, como veremos.


"O urso materializa um limite. "

O "urso" não é só o urso. É um espelho. O urso é a passagem para o interior dela. Rito de passagem, lembram?


A questão que ela se coloca é a seguinte:


"Se o urso  é um reflexo de mim mesma, que expressão simbólica dessa figura estou explorando com mais frequência? "

A força, a coragem, a sensibilidade, a selvageria, a territorialidade?


É preciso escutar a fera.


Mas não é só isso. Não é algo que possa se limitar a ela mesma. Existe algo mais que lhe escapa, que lhe é totalmente incompreensível. Algo que a ultrapassa.


O "acontecimento " urso revela que existe uma violência dentro dela e uma violência que, de alguma forma, ela procura no mundo.


Nástia também representa para o urso, que não suporta olhar nos olhos dos humanos porque vê neles a sua própria alma, o acesso à essa parcela de humanidade indesejada.


Aqui ela explora esse conceito de animismo que é um tema caro à antropologia.


Animismo é um termo utilizado para indicar a crença difundida entre o povos primitivos que todas as coisas naturais possuem uma alma e agem intencionalmente.


Nesse "entre" dois mundos existe um ponto em comum: a vida é uma luta constante. Não é pacífica. Isso é reconhecível para ela. Ela não sabe lidar com apaziguamento e calmaria. Sua existência sempre foi violenta, selvagem, mesmo antes do urso.


Esse encontro entre humano e animal, essa alteridade radical, a meu ver, a fez reconhecer através do urso essa ferocidade que habita no interior de cada ser humano e que o leva à procurar o aniquilamento. Pulsão de morte, Tânatos.


A sensação que ficou em mim durante a leitura foi que essa é a verdadeira busca:  a certeza de "poder voltar dessa dualidade mortífera",  de encarar a "fera" e, de alguma forma escapar, e a partir disso, encontrar uma outra forma de ser e estar no mundo.


Foi por isso ela subiu às montanhas e foi por isso que ela retornou mesmo após a experiência de quase-morte.


Para Benjamin,  como diz o trecho com o qual iniciei essa resenha,  a modernidade nos tornou pobres em experiências limiares, de transformação, de passagem. A literatura pode e vem em nosso socorro nesses casos, como ocorre em "Escute as feras", onde um relato pessoal ultrapassa a questão do biográfico e fala de todos nós, enquanto animal humano.


No início do meu texto mencionei que Proust me levou à Benjamin e no final da minha leitura, Nastassja Martin me levou justamente à Proust.


Assim ela conclui o livro :


"Volto a me sentar à mesa. Ponho os cadernos de campo ao meu lado, ao alcance das mãos. É hora. Começo a escrever."

Achei esse final bastante proustiano, uma vez que, ao sentar à mesa para escrever (o relato com o qual ela iniciou a obra) é o mesmo que acontece em "O tempo recuperado" (último volume do "Em busca do tempo perdido"). Essa ideia de ciclo, de se decidir por uma escrita de algo que acabou de ser lido.


Ela é francesa. Será que Proust foi uma de suas influências?









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Parabéns pela resenha Naty, muito boa 👏👏

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Obrigada amiga... esse livro é muito profundo. Não tem como ser a mesma pessoa depois de tudo que ela passou.

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Invité
25 août
Noté 5 étoiles sur 5.

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Invité
25 août
Noté 5 étoiles sur 5.

Adorei a resenha

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Obrigada

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