Um homem diante da morte. O protagonista - narrador começa o seu diário nos dando de antemão a informação de que ele possui apenas alguns dias de vida.
Ele sabe que morrerá em breve e decide contar (para si mesmo ) a sua história. Trata-se, assim de uma narrativa íntima e que não tem (inicialmente) a pretensão de ser lido por um terceiro, logo, não há a necessidade de esconder traços de sua personalidade ou de seu caráter.
"O que contar então? Acerca de suas doenças um homem decente não fala; inventar histórias não é minha especialidade; refletir sobre questões elevadas não é comigo; nem mesmo descrições da vida ao meu redor poderiam interessar-me; e não fazer nada é deprimente; de ler tenho preguiça. Ah! contarei a mim mesmo toda a minha vida."
Ele inicia seu retrospecto desde a infância. Filho único de uma família abastada, tinha uma mãe autoritária e um pai viciado em jogo. Apesar de ter tido educação e conforto, sua infância foi "dificil e infeliz".
Não sentia amor pela mãe, assim como não sentia que ela o amava.
"Minha mãe, por sua vez, tratava-me sempre da mesma maneira, carinhosa, mas fria."
Já a sua relação com o pai era diferente. Apesar de se referir a ele como um homem que não tinha autoridade alguma em seu lar e nem importância alguma como homem, amava-o com ardor e devoção.
Percebe-se que desde criança o narrador foi submetido a um lar disfuncional e isso irá refletir na formação de sua personalidade, especialmente em sua capacidade de amar e ser amado.
Após narrar parte de sua infância, o narrador decide mudar o rumo do seu diário, uma vez que essas recordações tristes de sua vida causaram sentimentos desnecessários em seu coração.
"Desabafos sentimentais são como alcaçuz: no início, você mastiga e não parece ruim, mas depois fica um gosto horrível na boca. "
Além disso, ele julgava sua vida insignificante e sem importância e não se diferenciava da maioria das pessoas. Decidiu, então, analisar o seu próprio caráter .
" Que tipo de homem sou? (...) diante da morte, não parece de fato perdoável o desejo de saber, como se diz, que espécie de bicho fui?"
E ele chega a conclusão de que ele foi, durante toda a sua vida, um homem supérfluo.
Se procuramos no dicionário o significado da palavra supérfluo chegaremos ao significado de "desnecessário " , "dispensável " . Esse significado, ao meu ver, representa em boa parte o homem supérfluo e segundo o próprio narrador "o mundo poderia passar sem esses homens ."
No entanto, o sentido de supérfluo no texto vai além disso. Representa também o sentimento de não pertencimento, de encontrar sempre o seu lugar ocupado como nos diz Tchulkatúrin.
Esse é o nosso herói Tchulkatúrin. Um homem que andava em círculos, que não possuía nenhum traquejo social , e que por conta de possuir um cadeado interno não conseguia expressar seus pensamentos.
Esse cadeado interno chamou bastante a minha atenção, especialmente no que faria essa barreira ser rompida, no caso, o amor.
Não coincidentemente ele escolhe justamente esse episódio de sua vida para contar em sua escrita final, o seu amor por Liza.
Por estar apaixonado, ele passa a agir naturalmente. Ele chega a dizer que ao contrário do que seria sua natureza, ficou à vontade com ela desde o primeiro encontro. Ele transformou-se pela força dessa nova sensação. A maneira afetuosa com que Liza e sua família recebe o narrador, faz romper seu cadeado e por um breve instante ele tem a oportunidade de deixar de ser um homem supérfluo.
"Minha alma floresceu a partir daquele dia. Tudo em mim e ao meu redor foi profundamente transformado! Toda a minha vida fora iluminada pelo amor, ela toda, até os menores recantos, como um quarto escuro e abandonado no qual entram com uma vela. "
Mas ao se descobrir não correspondido, o cadeado torna a fechar-se. Ele volta a guardar - se em si mesmo.
"Todos os hábitos anteriores que eu começara a abandonar devido a influência de uma sensação que me era nova de repente tornaram a surgir e a se apossar de mim. (...) Repito: retornei à casa dos Ojóguin tão desconfiado, mal encarado e frio quanto o fora desde a infância."
Essa inabilidade de amar e ser amado adquirida na infância se reflete em sua relação com Liza.
Ele se demonstra orgulhoso e mesquinho. Esse orgulho que ele possui por ser um homem supérfluo acaba fazendo-o viver em uma ilusão, por isso julgava-se amado por Liza e se ressente ao descobrir que ela amava outro, o Príncipe N*.
" A infelicidade dos solitários e tímidos - dos tímidos devido ao orgulho - consiste justamente no fato de que eles , tendo olhos e até mesmo esbugalhando-os, nada veem ou veem tudo segundo sua própria lógica através de lentes coloridas. "
Quando Liza é rejeitada pelo Príncipe N* e entra em um processo depressivo, ele tem a oportunidade de demonstrar seu amor, apoiá-la e confortá-la , mas ele fica feliz com a sua infelicidade.
" A missa da tarde acabara de começar e não havia muita gente; olhei ao redor e, de repente, vi junto à janela uma figura estranha. De início, não a reconheci: aquele rosto pálido, aquele olhar apagado, aquelas faces cavadas - acaso se tratava da mesma Liza que vira há duas semanas ? (...) parecia esforcar-se para rezar e sair de algum desânimo triste . (...) Para ser honesto, até hoje ignoro que tipo de sensação experimentei naquele momento; recordo que, de braços cruzados atirei-me ao divã e fixei os olhos no chão; mas não sei, em meio a tristeza parecia alegrar-me com alguma coisa... Por nada no mundo reconheceria isso se não escrevesse somente para mim."
A inaptidão para amar e ser amado fez com que ele esperasse uma atitude de Liza que cabia primeiramente a ele.
"Esperava encontrar uma pecadora arrependida e envergonhada e, já de antemão, adotei a expressão mais terna e afetuosa... De fato, eu a amava e almejava o prazer de perdoar e lhe estender a mão."
Mas foi Bizmiónkov, um funcionário de baixo escalão, quem acolheu Liza com seu amor paciente e abnegado e com isso casou-se com ela.
O amor genuíno poderia ter sido a chave que traria sentido a sua existência, mas Tchulkatúrin acaba se tornando vítima dele mesmo.
Aproximando-se do fim de sua vida, ele admite que jamais viveu a verdadeira experiência de amor.
" Um coração apto e pronto para amar logo deixará de bater. Será que se apagará para sempre sem ter conhecido uma única vez a felicidade e sem ter se dilatado uma única vez sob o doce fardo da alegria?"
Em carta à condessa Lambert de 1859, Turguêniev disse :
"No destino de quase todo homem há algo de trágico - apesar desse elemento ser frequente ocultado ao próprio indivíduo pela banal superficialidade da vida. O homem que vive na superfície (e há tantos deles !) nem sequer suspeita de que ele é o prolongamento de uma tragédia. À minha volta há tantas pessoas pacíficas, tranquilas, mas, se as olharmos de perto, veremos que cada uma delas tem o elemento trágico: uma marca pessoal ou uma que a história imprimiu - (...) E, acima de tudo, estamos todos fadados a morrer ... Pode -se querer algo mais trágico? "
Essa passagem retirada do livro da professora Aurora Fornoni Bernardini (Aulas de literatura russa) me fez refletir sobre o que seria o elemento trágico para Turguêniev, mais precisamente nessa obra.
E será o próprio Turguêniev na pessoa de seu protagonista Tchulkatúrin quem dirá que a tragédia da vida humana não está na morte, mas em uma vida vazia, sem sentido ou propósito, e que conduz à solidão.
A solidão é a grande tragédia de Tchulkatúrin e ao final do livro ele dirá
" Se ao menos agora, ante a morte (...) alguma voz amável, triste e amiga entoasse uma canção de despedida para mim, uma canção sobre minha própria desgraça, talvez me resignasse a ela. "
E admite: Morrer na solidão é uma estupidez.
Por isso, nosso herói morre em 1o de abril. Esta data na Rússia é conhecida como o dia do tolo, pois foi assim que agiu durante toda a sua vida.
Excelente post 👏👏👏👏