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Clara lê Proust

Atualizado: 13 de abr. de 2023


Quando comecei a ler esse livro, me veio à memória um trecho de George Steiner de um texto seu chamado  "Aqueles que queimam livros"  (texto maravilhoso por sinal) que faz parte do livro que tem o mesmo nome e que diz:


"O encontro com o livro, assim como com o homem ou a mulher, destinado a mudar nossa vida, frequentemente em um instante de reconhecimento do qual não se está consciente, pode ser completamente casual. O texto que vai nos converter a uma fé, que vai nos fazer aderir a uma ideologia, que dá a nossa existência um fim e um critério, pode estar a nos esperar na estante dos livros de ocasião, usados, com desconto. Talvez empoeirado e esquecido, na estante ao lado do livro que procurávamos."

No caso de Clara, o livro foi esquecido por um cliente no salão em que ela trabalhava, no seu carrinho de produtos. Casual. O livro era Em busca do tempo perdido de Marcel Proust.



Também foi o livro que mudou a minha vida. No início, quando fomos apresentados, relutei bastante a encarar as suas mais de 3 mil páginas , não pelo tamanho em si, mas por achar rebuscado demais para a minha percepção de leitora comum.


Clara também era uma pessoa comum. Trabalhava como cabeleireira em um salão onde a clientela era antiga e sempre a mesma, tinha um namorado com quem não tinha muita conexão e um gato que era indiferente à sua presença.


Ambas as semelhanças (o livro e a história de vida da protagonista) foram suficientes para me atrair completamente para a leitura. Afinal, qual leitor não gosta de ler sobre seu livro favorito?



A vida de Clara passava em um marasmo sem fim e, após guardá-lo por vários meses, ela resolveu pegar o livro esquecido pelo cliente e decidiu lê-lo. Ou será que o que ela queria mesmo era ser lida por ele?


Nesse aspecto o próprio Proust e George Steiner estão de acordo.


Proust em O tempo recuperado (7o volume do Em busca do tempo perdido) diz que


"Na realidade, todo leitor, quando lê é o leitor de si mesmo "

Já Steiner nos fala que


" Nossas intimidades com um livro são portanto completamente dialéticas e recíprocas: lemos o livro, mas, mais profundamente, pode ser o livro a nos ler."

E como eles se leram. Houve uma afinidade entre ela e Marcel (o narrador) que foi crescendo ao longo das páginas e após um estranhamento inicial, a cumplicidade entre leitor e obra foi se estabelecendo a ponto de Clara dizer


" No começo, a gente fica naquela: Não estou entendendo, essa frase devia parar, e continua. Mas é porque a gente lê depressa demais, está errado. É preciso ir devagar, fazer pausas. Agora, quando leio, tenho a impressão de ouvi-lo falar comigo."

Foi muito interessante acompanhar a leitura de Clara . Para mim, como leitora e apaixonada por Proust foi também muito significativo. Ler os trechos marcados por ela em seu caderninho de anotações me deram uma sensação de reconhecimento e felicidade ao pensar: "ah, marquei essa passagem também. Essa parte também mexeu muito comigo."


Mas mais importante que isso foi acompanhar o despertar de consciência de Clara. Quando lemos o Em busca do tempo perdido algo em nós é mudado.


Sem percebermos, sem precisar de muita racionalização, entendemos que não somos mais os mesmos que iniciou a leitura. Nem nós,  nem os outros, nem o mundo e é por isso que quem é leitor de Proust , assim como Clara, quer levar a sua palavra a mais e mais pessoas, atrair outros públicos, desejar que todos experimentem esse deslumbramento que o Em busca do tempo perdido desperta em nós como poucos (ou talvez nenhum) outro livro é capaz de fazer com tanta intensidade.



Clara lê Proust.  Clara é lida por Proust.  Clara deseja que mais pessoas leiam Proust.


Ler Proust não é apenas uma experiência literária. Ler Proust é uma mudança de vida.


"Além de tudo, é uma história edificante. Não é grande o número de pessoas que se reinventam. Geralmente aceitamos como inquestionável a versão da realidade que nos apresentam em primeiro lugar, abstemo-nos de contestá-la por falta de audácia, porque é mais fácil, mais cômodo e, ao fazê-lo, vivemos a vida imperfeita e frustrante de alguém que só se parece conosco de longe. Ela tem poucas certezas, cada vez menos, para dizer a verdade, mas tem como certo o seguinte: não percebemos até que ponto nosso destino é moldado pelos outros. "

E para finalizar, algo que me incomodou nesse livro foi o tempo que o autor levou para fazer as ambientações. O livro é curto, tem em torno de 170 páginas e 50 delas ficamos apenas com o ambiente do salão e seu "entra e sai" de clientes. Achei um pouco cansativo esse início, mas é uma leitura que indico porque plantar a sementinha proustiana no mundo nunca é em vão.


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2 Comments

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patriciamilanis
patriciamilanis
Apr 25, 2023

Muito legal a ideia desse livro.

Confesso que ainda não li Proust, comecei ano passado na LC porém não dei continuidade... Mas não pense que desisti, tão logo a vontade bater forte recomeço a leitura. Tudo no seu tempo 😅

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eu também amei a premissa desse livro, Path. E sobre ler Proust é isso mesmo... precisamos respeitar nossos momentos como leitora. Quando for o seu momento vai fluir maravilhosamente e vai ser lindo

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