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A paixão segundo G.H (Clarice Lispector)

Atualizado: 19 de abr.


A paixão segundo G.H é uma obra que já inicia em "in media res", ou seja, já está em curso. É uma narrativa que não tem um começo, nem um  fim (representados pelos travessões no início e no final da obra), mas uma continuidade como nos mostra também a sequência de "capítulos " que sempre se inicia com a última frase do "capítulo" anterior .


A sensação que fiquei durante a leitura é que A paixao segundo G.H é uma dança, onde somos conduzidos no embalo das palavras.



Mas trata-se de uma narrativa monologal, onde acompanhamos no primeiro momento, o fluxo de pensamentos da narradora tentando contar algo que lhe havia acontecido no dia anterior, algo que a desorganizou  profundamente.


Ela dirá


"É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar."

As protagonistas de Clarice sempre estão nesse percurso de se perder para se achar, de morrer para renascer e renascer de forma mais autêntica.


Esse é um dos paradoxos da vida. Todo ato de perder-se é uma oportunidade de se encontrar.


"Perder-se é um achar-se perigoso."

Com G.H não foi diferente.


G.H é uma mulher rica que mora na cobertura de um edifício na área nobre do Rio de Janeiro. Ela é escultora,  apesar de não exercer o ofício de forma profissional, mas o fato de ser escultora desperta em G.H uma profunda necessidade de dá forma às coisas.


É por isso que ela está procurando desde o início da narrativa essa forma,  uma forma onde possa enquadrar o que havia lhe acontecido e dela extrair um sentido. 


Ela, então, reconhece que uma forma possível é a linguagem,  a escrita.


" (...) esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém. "

Alguém imaginário a quem ela pede a mão para percorrer com ela essa via crucis em busca da compreensão do ocorrido e dela própria.


O problema é que a linguagem é limitada para exprimir as nossas experiências mais significativas. A partir do momento em que a linguagem é inserida, já passa a ser uma coisa outra.


Como dar uma forma, como colocar em palavras as nossas experiências sem que isso empobreça a própria experiência?


Mas, também, se não nos expressamos, isso morre dentro da gente.


Esse paradoxo da linguagem é um dos dilemas que o livro nos apresenta.


"Será preciso coragem para fazer o que vou fazer : dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: NÃO É ISSO, não é isso."

Qual seria a saída? Esquecer o "acontecido"?


Não. Como mencionei anteriormente, se expressar é uma necessidade humana.


"Para que eu continue humana meu sacrifício será o de esquecer? Agora saberei reconhecer na face comum de algumas pessoas que – que elas esqueceram. E nem sabem mais que esqueceram o que esqueceram."

Mas G.H necessita da forma. Dar forma torna algo palpável, assimilável, organizável e a forma virá através das palavras, por mais limitada que a linguagem seja, uma vez que nossa relação com o mundo se dá através delas.


"Terei que fazer a palavra como se fosse criar o que me aconteceu? Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivivel. (...) Criar não é imaginação, é correr o risco de se ter a realidade. "

Essa ideia de criação da realidade através da linguagem vem de Nietzsche, mas tratarei sobre isso em outro post.


E o que aconteceu a G.H, ocorreu às 10 horas da manhã do dia anterior ao seu relato.



G.H. se demorava à mesa do café,  a empregada havia se demitido na véspera.  Nunca havia se sentido tão dona do seu próprio apartamento.


"O apartamento me reflete."

Assim pensava ela.


Decidiu que iria arrumar o apartamento a começar pelo quarto da empregada. Organizar as coisas externamente nos passa uma sensação de organização também interior e G.H sabia disso.


" Ordenando as coisas, eu crio e entendo ao mesmo tempo."

É difícil descrever o momento epifânico vivido por G.H no quarto da empregada. É necessário que o leitor se torne aquele ser imaginário para quem ela destina seu relato, segure a sua mão e faço o percurso junto com ela. Um percurso em busca da sua essência, do seu núcleo, daquele núcleo primário que encontramos ao nos despirmos de todas as camadas que vamos acumulando ao longo da vida e que nos transformam em um ser diferente daqueles que somos de fato.


Nós mesmos assumimos essas máscaras, nos vestimos dessas camadas porque assim nos tornamos pertencentes, definidos, organizados, humanizados.


Assumimos como nosso aquilo que dizem de nós e vivemos como se isso fosse a máxima verdade.


A questão é quanto de autenticidade cabe dentro dessa versão social que acaba também se tornando a nossa versão pessoal?


"Eu não me impunha um papel mas me organizara para ser compreendida por mim, não suportaria não me encontrar no catálogo. Minha pergunta, se havia, não era "que sou" , mas "entre quais eu sou".

G.H, a das iniciais gravadas nas valizes, estava em busca dessa autenticidade. Ela dizia que


" (...) quanto a mim mesma, sempre conservei uma aspa à esquerda e à direita de mim".

Se colocar entre aspas é reconhecer a sua inautenticidade. Ela nunca fora ela própria, mas apenas uma citação feita pelos outros.


O fato é que G.H se encaminha para o quarto da empregada que se chamava Janair, para dar início à sua organização,  quarto esse que  imagina estar bastante sujo e entulhado.


"Começaria talvez por arrumar pelo fim do apartamento: o quarto da empregada devia estar imundo, na sua dupla função de dormida e depósito de trapos, malas velhas, jornais antigos, papéis de embrulho e barbantes inúteis."

Mas ao abrir a porta do quarto G.H tem a sua primeira sensação de espanto, um espanto tão profundo que lhe deu a impressão de estar em um "hospital de loucos."


Era que,  ao contrário do que ela pensava, o quarto estava completamente limpo. Limpo e claro.


Esse foi o primeiro momento, ainda na porta do quarto, que abriu uma lacuna imensa na mente de G.H, a levou a confrontar todas as suas convicções e criou a atmosfera necessária para as demais vivências que viriam a seguir.


O quarto imaginado, ao ser confrontado com o quarto real, se tornou uma ideia falsa.


"Eu me preparara para limpar coisas sujas mas lidar com aquela ausência me desnorteava."

Quais as outras ideias falsas sustentam a minha visão das coisas? Imagino que isso tenha passado pela cabeça de G.H.


A prova que esse contato inicial com o quarto completamente limpo alterou algo na mente dela é que a sua noção de espaço também se tornou alterada .


" O quarto não era um quadrilátero regular: dois de seus ângulos eram ligeiramente mais abertos. E embora esta fosse a sua realidade material, ela me vinha como se fosse minha visão que o deformasse"


"O quarto não tinha um ponto que se pudesse chamar de seu começo, nem um ponto que pudesse ser considerado o fim. Era de um igual que o tornava indelimitado."

Mas o segundo grande espanto de G.H ainda estava por vir. Ao entrar um pouco mais no quarto, ela se deparou com um desenho feito à carvão de um homem nu, uma mulher nua e um cão. O desenho foi feito por Janair.


E aqui entra um ponto que eu considero bastante significativo na obra.


Para atingir esse núcleo autêntico (busca inconsciente de G.H) é necessário que aja uma "queda". Uma queda é um acontecimento brusco, onde todo o ser vem abaixo para que, a partir dos escombros, surja um novo ser mais autêntico e real. 


Essa queda necessária no processo de autodescoberta só acontece em contato com o outro, o outro diferente de nós e que por ser diferente, tem a capacidade de nos revelar a nós mesmos.


G.H vai dizer que com as pessoas do seu convívio ela não tinha essa queda. As pessoas de sua classe social não podiam causar essa queda porque eram seus espelhos. Ela mesma vai reconhecer isso e dirá " Eu vivia mais dentro de um espelho "


"Também para a minha chamada vida interior eu adotara sem sentir a minha reputação: eu me trato como as pessoas me tratam, sou aquilo que de mim os outros veem. Quando eu ficava sozinha não havia uma queda, havia apenas um grau a menos daquilo que eu era com os outros"

O ver-se pelo olhar de um outro diferente, o que traria essa possibilidade da queda, só ocorreu quando G.H abriu a porta do quarto e se deparou com os desenhos à carvão feitos por Janair na parede.


Ela imediatamente suspeitou que a empregada a odiava e que havia deixado os desenhos como uma mensagem cifrada para quando G.H abrisse a porta, mas o que os desenhos de Janair revelavam era que ela própria se via nua e vazia como os desenhos à carvão.


Foi a primeira vez que ela não se viu retratada por um espelho.


"Havia anos que eu só tinha sido julgada pelos meus pares e pelo meu próprio ambiente que eram, em suma, feitos de mim mesma e para mim mesma. Janair era a primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar eu tomava consciência."

G.H, aquela das iniciais nas valizes, proprietária de uma imensa cobertura na cidade do Rio de Janeiro, escultora,  a que gostava da forma,  da vida organizada e humanizada, ao entrar no quarto cuja presença de Janair era refletida através dos desenhos na parede,  percebeu espantada que , de repente,  não cabia nas suas próprias definições, não se sentia mais refletida pelo seu espaço físico como acontecia com o resto do apartamento,  em suma, não sabia mais quem era.


"Como te explicar: eis que de repente aquele mundo inteiro que eu era crispava-se de cansaço, eu não suportava mais carregar nos ombros – o quê? – e sucumbia a uma tensão que eu não sabia que sempre fora minha. Já estava havendo então, e eu ainda não sabia, os primeiros sinais em mim do desabamento de cavernas calcáreas subterrâneas, que ruíam sob o peso de camadas arqueológicas estratificadas – e o peso do primeiro desabamento abaixava os cantos de minha boca, me deixava de braços caídos. O que me acontecia? Nunca saberei entender mas há de haver quem entenda. E é em mim que tenho de criar esse alguém que entenderá."

Toda essa experiência de confronto com a sua ideia errônea do quarto, o olhar do outro diferente dos espelhos convencionais,  se intensificou quando ela, finalmente, encontrou o seu outro radical, a barata.


É através do encontro com a barata que Clarice radicaliza a noção de alteridade.


Ela, como artista, tão ligada à beleza, à estética, se  depara com um inseto pelo qual nutre um profundo sentimento de nojo e horror.


A barata que, na paixão de G.H representa o gênese,  "tão velha que era imemorial" , "era antiga como uma lenda."


"Saber que elas já estavam na Terra, e iguais a hoje, antes mesmo que tivessem aparecido os primeiros dinossauros, saber que o primeiro homem surgido já as havia encontrado proliferadas e se arrastando vivas, saber que elas haviam testemunhado a formação das grandes jazidas de petróleo e carvão no mundo, e lá estavam durante o grande avanço e depois durante o grande recuo das geleiras – a resistência pacífica. Eu sabia que baratas resistiam a mais de um mês sem alimento ou água. E que até de madeira faziam substância nutritiva aproveitável. E que, mesmo depois de pisadas, descomprimiam-se lentamente e continuavam a andar. Mesmo congeladas, ao degelarem, prosseguiam na marcha... Há trezentos e cinquenta milhões de anos elas se repetiam sem se transformarem. Quando o mundo era quase nu elas já o cobriam vagarosas."

Será ela, a barata, que representará aquela queda necessária para o surgimento de uma nova consciência e, não apenas  metaforicamente. G.H, tomada de um nojo profundo, tentando fugir do quarto, tropeça no pé do guarda - roupa e cai.


Ela tenta levantar e sair,  mas é como se algo a fixasse naquele lugar entre a cama e o armário e imóvel, ela esperou a barata sair de dentro do guarda -roupa, uma espera que traduzia "todas as esperas anteriores " de sua vida.


"Foi então que a barata começou a emergir do fundo."

Do armário ou dela mesma?


Do armário saía a barata e dela um medo enorme que despertou um ódio nunca antes experimentado e um desejo incontrolável de matar a barata.


Esse instinto era tão desconhecido dela mesma que ao esmagar a barata com a porta do guarda - roupa, ela ficou em dúvida se havia matado a barata ou ela própria, ela a G.H das iniciais gravada nas valizes.


E não por desconhecimento do seu ódio pela barata ou pelo instinto que tivera de matar o inseto,  mas pelo conhecimento do enorme prazer que sentira.


Ela que sempre fora uma mulher dentro dos padrões,  que experimentara durante a vida alegrias e dores contidas, ela sentia (e era capaz de sentir) um enorme e indefinível prazer ao olhar para a barata esmagada ao meio pela porta do armário.


"É que nesses instantes, de olhos fechados, eu tomava consciência de mim assim como se toma consciência de um sabor: eu toda estava com sabor de aço e azinhavre, eu toda era ácida como um metal na língua, como planta verde esmagada, meu sabor me veio todo à boca."

É quando, ainda tomada pelo júbilo desconhecido, ela começa a observar a barata que ainda resiste viva e dessa observação começa a surgir uma identificação entre elas.


É que a barata,  assim como ela, também era formada por camadas. Cascas e mais cascas, camadas e mais camadas , finas como as de uma cebola.


"É que eu olhara a barata viva e nela descobria a identidade de minha vida mais profunda."

Essa identificação com a barata a fez perceber com um espanto que o seu "eu" vinha de uma fonte não humana,  muito anterior e maior que a humana.


Ela , então, se torna do nível da barata e não apenas isso, ela era a própria barata. Ela tocara no imundo do mundo e a sua parte "coisa" começou a desfazer as suas camadas humanizadas e não era sem medo e horror que ela se dava conta disso.


"A desumanização é tão dolorosa como perder tudo, como perder tudo, meu amor."

Caímos novamente em um dos pontos centrais do romance, o espanto diante da falta de autenticidade.


E ela percebe que toda a sua vida fora fundada em uma esperança em vir a ser aquilo que não era.


Esse sentimento que G.H experimentou e que se repetirá em outras passagens do romance , da necessidade de prescindir da esperança para chegar a uma vida autêntica, ao núcleo da vida como G.H diz, é um dos pontos que mais gosto da obra.


Prescindir da esperança nos faz não apenas abrir mão de lutar para sermos aquilo que não somos como também nos obriga a viver plenamente o agora, o já , como Clarice gosta de dizer.


"Era já. Pela primeira vez na minha vida tratava-se plenamente de agora. Esta era a maior brutalidade que eu jamais recebera. Pois a atualidade não tem esperança, e a atualidade não tem futuro: o futuro será exatamente de novo uma atualidade."

Isso me fez lembrar de um livro que li ano passado e que já tem resenha aqui no blog , "A felicidade desesperadamente" de André Comte  - Sponville. Abrir mão da esperança (ou pelo menos equilíbra-la) nos fará  ter o que o autor chama de felicidade em ato. Uma felicidade que pode ser gozada agora, amando aquilo que já se tem, algo desconhecido para G.H.


"Eu preferia continuar pedindo, sem ter a coragem de já ter."

Nesse sentido, G.H vai questionar também essa necessidade que ela própria tinha de transcendência. Transcender para ela era como uma fuga, " um esforço humano de salvação".


A paixão de G.H não é uma paixão transcendente, pelo contrário,  sua via crucis exige que ela fique dentro do que é, dentro da atualidade, o que para ela é muito mais apavorante.


Não transcender é um sacrifício, transcender é uma saída.


"Eu quero a atualidade sem enfeitá-la com um futuro que a redima, nem com uma esperança. (...) Quero encontrar a redenção no hoje, no já, na realidade que está sendo, e não na promessa, quero encontrar a alegria neste instante."


"– Escuta. Eu estava habituada somente a transcender. Esperança para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro, eu acreditava tão pouco no que existe que adiava a atualidade para uma promessa e para um futuro. Mas descubro que não é sequer necessário ter esperança."

Ao abdicar da esperança e da necessidade de transcendência, G.H experimenta o gosto da vida na sua essência, sem o disfarce dos temperos, o gosto mais primário que é o gosto do nada.


"(...) e o gosto era novo como o do leite materno que só tem gosto para boca de criança.(...) com a perda da humanidade, eu passava orgiacamente a sentir o gosto da identidade das coisas."

Somos acostumados aos temperos, ela dirá. Queremos o acréscimo.  Não suportamos o gosto do nada.


"Até então meus sentidos viciados estavam mudos para o gosto das coisas."

Tem muito mais para falar sobre essa obra que assim como eu, como G.H e a barata, também é cheia de camadas, mas aquela G.H do início tão preocupada com a forma, tão necessitada da linguagem para de alguma forma se redefinir,  descobre que sua busca mais íntima é cega era pelo inexpressivo e para chegar até isso foi preciso se despir mais e mais da sua humanidade grossa, feita de conceitos grossos, passar pelo ritual e atingir o seu núcleo autêntico.


"Ouve: Quando uma pessoa é o próprio núcleo, ela não tem mais divergências. Então ela é a solenidade de si própria"

Alcançar essa máxima autenticidade, chegar ao núcleo, é tocar no inexpressivo. Essa sempre fora a sua ânsia e então ela havia chegado lá.


E finalmente pôder dizer...


A vida se me é e eu não estou entendendo o que digo. E adoro.




















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