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A mulher que amou demais (Nelson Rodrigues)

Atualizado: há 4 dias

Ao retirar o livro da estante, passei algum tempo refletindo acerca do seu título.  Quando o amor é demais? Amou demais! Mas qual seria a medida do amor?


Seria ele excesso por essência, hybris para usar um termo grego ou obedeceria àquela máxima de Cleóbulo de Lindos, um dos sete sábios da Grécia, que dizia que "A moderação é melhor"?


Podemos pedir auxílio também à Santo Agostinho que dizia:


"A medida do amor é amar sem medida."

Ou seria ele uma força violenta que, quando reprimida, adoece o corpo como dizia Thomas Mann em "A montanha mágica" ou que adoece o espírito como Proust bem colocou em "No caminho de Swann"?


Amar "moderadamente" eliminaria esses "efeitos nocivos" do amor?


Muitos tentaram definir o que é amar.


Em "O Banquete" de Platão (já tem resenha aqui no blog), Fedro diz que amar é se sacrificar pelo amado. Para Aristófanes, amar é restaurar a nossa natureza primitiva, unindo-nos novamente à nossa metade perdida. Sócrates, em seu discurso, dirá que amar é desejar e só se deseja o que não se tem.


Para Freud, amar é uma produção narcísica. O encontro com o objeto amado seria, na verdade, um reencontro.



Comecei a leitura, então, atrás de pistas que Nelson Rodrigues, ou melhor, Myrna (pseudônimo usado por ele ao escrever o folhetim no jornal que viria a se tornar este livro) poderia ter deixado pelo caminho.


No enredo, "a mulher que amou demais" chama-se Lucia, noiva de Paulo. Estavam às vésperas do casamento. Lucia era uma menina de 18 anos, mas mesmo inexperiente, sentia que o noivo, apesar de ser bem posicionado na vida (era diplomata, tinha parentes ministros e até um tio multimilionário), não expressava emoções, nunca perdia o domínio dos nervos (nem na hora da paixão) e seus beijos eram rápidos e frios.


Lucia nunca havia sentido a expressão do amor, mas estava feliz. Afinal, “o destino fora bom com ela. Muitas mulheres a invejariam.”


Foi pensando nessas características do homem que no dia seguinte se tornaria seu esposo que Lucia, ao atravessar uma rua, encontrou Carlos.


Carlos, um homem extremamente atraente, com aspecto dom-juanesco, deixa Lucia fascinada. Mesmo assim, a moça tenta se desvencilhar-se do desconhecido, esbraveja que é noiva, mas acaba aceitando seu convite para tomar um sorvete.


Carlos sempre foi muito consciente do seu poder de sedução. Chegava até mesmo a se gabar que nenhuma mulher seria capaz de resistir à sua beleza. Lucia realmente não foi. Se apaixonou pelo estranho imediatamente.


Ele, então, diz à ela que cometerá um crime, um assassinato, mas que antes disso precisava encontrar uma pessoa que, por amor a ele, desse o seu perdão antecipado, o absolvesse do crime que ainda nem cometera. Essa pessoa era Lucia.


O que Lucia não sabia, mas viria a saber em breve, é que Carlos é irmão de criação de Paulo, seu noivo. Cresceram juntos desde criança quando Carlos ficou órfão.  Eram amigos inseparáveis, quase gêmeos, apesar da dessemelhança física. Segundo o narrador (em 3ª pessoa), Carlos era lindo, Paulo um rapaz simpático.  


Lucia, Paulo e Carlos formam, assim, um triângulo amoroso. Lucia apaixonada por Carlos, Carlos cego na sua obsessão em cometer o crime (mas correspondendo aos sentimentos de Lucia) e Paulo, que supervalorizada o status e aparência, preocupado com o futuro do casamento que corria o risco de não mais acontecer (afinal, ele tinha convidado o ministro).


A trama se complica quando a mãe de Paulo revela que Carlos e Paulo se odeiam por conta de uma mulher, Virgínia, que ambos amaram no passado.


Virgínia, que amava Carlos e por isso rejeitara Paulo, estava morta e Paulo foi acusado por Carlos de assassinato.


Era por amor à Virgínia que Carlos estava obcecado no desejo de vingança.  Paulo era seu alvo.


Virgínia aparece na narrativa como um duplo de Lucia. Ambas são muito parecidas em tudo. Na aparência, no jeito de olhar, até na forma de andar.


Em muitos momentos da história ficamos em dúvida se ela, Virgínia, não seria uma produção da mente confusa de Lucia. Se Lucia estaria enlouquecendo por amar Carlos e estar sendo obrigada a casar com Paulo.


É através desse dilema pessoal da protagonista que Nelson Rodrigues vai tecendo suas críticas em relação à sociedade de sua época (início dos anos 50) e sua visão do amor, esse sentimento tão incompreensível até os dias de hoje.


Uma dessas críticas é em relação ao casamento.  Nelson deixa claro que o casamento nada tem a ver com amor. O casamento é uma instituição social que serve para garantir patrimônios e status.


Lucia, ao dizer para sua futura sogra que não poderia casar-se com Paulo porque amava outro, a sogra imediatamente disse:


“Ninguém se casa apaixonada. Casamento de amor só existe na proporção de um por mil, se tanto. E não dá certo. Porque o amor se gasta: essa história de amor eterno é bobagem. O grande casamento, sabe qual é? Aquele que se baseia na posição social do noivo, no luxo, no dinheiro, em coisas concretas, compreendeu? Basta que a mulher tenha tolerância pelo homem. Nada de mais.”

Quando o dinheiro e o status ditam as relações afetivas, quando a satisfação dos interesses individuais se sobrepõe à busca de uma harmonia comum, faz com que o amor (sendo uma necessidade humana básica) procure outro lugar para nascer e esse lugar, a meu ver, é na idealização.


A modernidade (onde tudo passou a ser contabilizado, racionalizado e individualizado, onde parafraseando o próprio Nelson Rodrigues que dizia que “dinheiro compra até amor verdadeiro”), mais do que qualquer outra época histórica, nos fez sentir a necessidade do sonho, do devaneio, da ilusão, e o amor passou a ser um ideal, algo que tiraria a todos nós desse vazio, da falta de sentido e que daria um novo ímpeto à vida, um novo fervor, um novo deslumbramento, uma possibilidade de eternidade, de sentir emoções duradouras em um mundo de sensações descartáveis.


Mas ela não tornou o amor mais fácil, mais acessível. O amor continuou sendo algo difícil de ser alcançado. É quase uma condição sine qua non à existência do amor desde tempos imemoriais: a impossibilidade da concretude do sentimento amoroso. Quanto mais impossível, mais sofrido, "mais amor".


O problema é que no amor idealizado não há espaço para o humano, só há espaço para o ideal.


É por isso que Carlos não é um amado para Lucia, mas um ídolo. Ele representa o seu ideal de amor. Aquele amor capaz de tudo pelo outro até de matar e, também, de morrer por ele.


Em um texto da coluna “Myrna escreve” publicada no jornal Diário da Noite em 18 de junho de 1949, Myrna fala sobre o seu romance e sua visão do amor. Para ela, o amor é uma abnegação total e absoluta. Se há um limite para essa entrega, se cria uma restrição, não há amor. O sacrifício em nome do sentimento (e não do amado já que esse é um ideal, não é alguém que de fato exista) não seria um sacrifício, mas uma homenagem.


"Direi mais: é no amor que o sacrifício deixa de o ser"

Comecei essa resenha em busca de respostas sobre o que seria amar. Lembram?


Para Nelson,


“Amar é dar razão à pessoa amada que não a tem.”

Para mim, amar é expressar a nossa potência amorosa. É realizar esse esforço de sair do ideal e abraçar o humano pelo humano com todas as suas mazelas e contradições.


Quando, destruído o ídolo, surge o ser humano por inteiro. Amor é a capacidade de olhar para esse que se revelou diante de nós e não sermos indiferentes.


É por isso que amar na contemporaneidade é muito difícil, não porque o amor esteja em algum horizonte distante, mas porque abdicar do ideal é abdicar do sentido da vida moderna.


Tudo que pensamos que é amor é, na verdade, outra coisa. É uma construção cultural, ideológica e mercadológica.


Mas amar, amar pelo amor, amar nos colocando dentro de uma humanidade comum (o que nos leva a ter que enxergar o outro por ele mesmo, o que está longe de ser aquele ser perfeito criado pelo ideal de amor) é um caminho ainda longo e árduo a percorrer.

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2 Comments

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patriciamilanis
patriciamilanis
há 2 dias

Naty lendo teu post me recordei de uma definição que sempre me vem a mente quando penso em amor.


"O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta." 1Coríntios 13:4-7 ARA


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Eu acho linda essa passagem. O amor é generoso e a generosidade só acontece em abundância e você transborda isso ao mundo. O problema é que confundimos amor com apego, dependência, mas amor como forma de existência é algo mais amplo e profundo e que deve estar presente em todos os nossos atos e palavras, todos os dias de nossas vidas.

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