top of page

Existência independente

Foto do escritor: A leitora ClássicaA leitora Clássica

Atualizado: 1 de abr. de 2023

"Perguntava-me como se consegue viver quando não se espera mais nada de si"


Essa frase retrata muito bem os dramas existenciais das três protagonistas desse livro. Mulheres bem diferentes,  com vivências diferentes, mas que possuem algo em comum: a perda de sentido da vida.


No primeiro conto , A idade da discrição,  a perda de sentido vem a partir do momento em que ela percebe que não tem mais controle sobre as escolhas do filho, e posteriormente,  quando passou a se sentir vazia intelectualmente.


"O que fazer quando o mundo se descoloriu? Só resta matar o tempo. Eu também atravessei um mau período há dez anos. Estava descontente com meu corpo, Philippe tornara-se adulto. Após o sucesso de meu livro sobre Rousseau, sentia-me vazia. Envelhecer me angustiava."

A segunda,  Murielle, protagonista do conto Monólogo, quando se deu conta que não seria mais possível uma vida ao lado do ex marido e do filho, única condição para existir.


"Um homem na minha casa. O bombeiro hidráulico viria o porteiro me cumprimentaria educadamente os vizinhos se moderariam. Que merda; eu quero ser respeitada quero meu marido meu filho meu lar como todo mundo."

E a terceira, Monique, protagonista do conto que dá nome ao livro (A mulher desiludida), quando se desfez sua ilusão do casamento perfeito após descobrir a traição de Maurice, seu companheiro há 22 anos.


"Meu erro mais grave foi não compreender que o tempo passa. Ele estava passando, e eu permanecia estática na atitude de esposa ideal de um marido ideal. Em vez de reanimar nossa vida sexual, eu me fascinava com as lembranças de nossas antigas noites. Imaginava ter guardado meu rosto e meu corpo de trinta anos em vez de me cuidar, de fazer ginástica, de frequentar um instituto de beleza. Deixei minha inteligência atrofiar-se: não me cultivava mais e me dizia: mais tarde, quando as meninas tiverem me deixado. (...) Sim, a jovem estudante que Maurice desposou, que se apaixonava pelos acontecimentos, pelas ideias, pelos livros, era bem diferente da mulher de hoje, cujo universo fica entre estas quatro paredes."

Todas essas mulheres enfrentam dramas pessoais de forma mais ou menos penosa conforme seu grau de independência e liberdade.


Isso vai muito ao encontro da corrente filosófica da autora Simone de Beauvoir , o existencialismo. Para o existencialismo,  a ilusão impede o ser humano de realizar sua liberdade. Daí a minha concordância com o título,  A mulher desiludida. 


"Só quando se perde a ilusão é possível enxergar, sem véus, a precária e provisória condição humana que nos faz instáveis e condenados à degradação." Disse Andréa Pachá no prefácio dessa edição.

O terceiro conto, A mulher desiludida, foi o que mais me afetou. Monique é uma mulher que tem muito a ensinar a todas as mulheres, especialmente no quesito do que não fazer.


Ela começa a escrever um diário. É através desse diário que Monique vai nos contar a sua vida, seus pensamentos, seus sentimentos.


Ainda jovem se casa com Maurice. Monique passa a viver integralmente para a criação das filhas e para as necessidades do marido em um completo abandono de si mesma.


"Quando se viveu de tal maneira para os outros, é um pouco difícil começar a viver para si."

Após 22 anos de casados , duas filhas adultas, Monique descobre que Maurice a traída com uma mulher mais jovem, uma advogada divorciada.


O marido propõe viver as duas relações e ela aceita na esperança de ser um caso passageiro e sem importância. A partir daí veremos a vida de Monique desabar, não pela traição em si, mas pelo NÃO que ela não foi capaz de dar.


A sua incapacidade em dizer NÃO foi consequência da falta de uma existência independente e independente em sentido amplo (financeira, emocional, psicológica,  espiritual) . Monique se auto completava em Maurice. Ela vai nos dizer em um trecho que


"Meus desejos, minhas vontades, meus interesses jamais se distinguiram dos seus."

Chega um determinado momento que ela até cogita parar com a escrita do diário já que não havia nada em sua vida que valesse o registro.


"Por que prosseguir com esse diário se não tenho nada a anotar ?"

E essa falta de uma existência independente custará caro. Monique passa a fazer mais e mais concessões e perde a gestão sobre a própria vida.


Conversa com as amigas, pede conselhos, ora para Isabelle,  ora para Diana, ora para Marie Lambert, na esperança que alguém diga o que ela deve fazer e como deve agir. Depois passa a questionar as próprias filhas sobre o motivo do pai ter deixado de amá-la. A cegueira sobre si mesma é tão grande que qualquer pessoa tem poder de dizer o que é o melhor para ela, menos ela própria ao ponto de todos cansarem da sua incapacidade de se retirar dessa situação. De PARAR.


"Todos estão fartos. As tragédias são assim: as pessoas se interessam, são curiosas, são boas. Mas, quando se repetem e marcam passo, tornam-se fastidiosas."

Monique não pensava em se desenvolver. Acreditava que o fato de Maurice a amar estava garantida. Se julgava feliz e completa nesse amor. Não percebia que o tempo passa e tudo pode mudar.


"Apenas havia esse tempo que passava e eu não sabia. O rio do tempo, as erosões causadas pela água do rio: é isso, houve erosão de seu amor pelas águas do tempo."

Me fez lembrar da inquietação da Joana em Perto do coração selvagem da Clarice Lispector:


"– Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois?"

É preciso se preparar para o "depois" (a saída dos filhos de casa, a aposentadoria, as mudanças no corpo, a falta de um companheiro por separação ou morte, etc) . Por que a vida é uma construção diária, não há garantias.


Quando já era tarde demais, Monique cobra a responsabilidade do marido e é ela própria quem aponta o caminho que deveria ter seguido:


"— Seu maior erro foi ter me deixado adormecer na confiança... Eis-me aos 44 anos, de mãos vazias, sem profissão, sem outro interesse na vida a não ser você. Se me tivesse prevenido há oito anos, eu teria criado para mim uma existência independente e aceitaria a situação com mais facilidade."

A pergunta é: cabe ao outro nos dizer o que devemos fazer da nossa vida ?


Essa leitura, para mim, é um ALERTA.  Não podemos ter controle sobre o que nos acontece, mas é nossa obrigação desenvolver ferramentas para saber lidar com circunstâncias e só se consegue essas ferramentas e essa habilidade com autoconhecimento e o cultivo de uma EXISTÊNCIA INDEPENDENTE.


As mulheres da história tinha graus de dependência diferentes e isso foi determinante para serem mais ou menos "destruídas ". Aliás, o título em inglês é exatamente The Woman Destroyd.


Um trecho que me marcou bastante foi


"Meu Deus, uma vida é tão plana, é clara, decorre naturalmente quando tudo vai bem. E basta um esbarrão. Descobre-se que é opaca, que não se sabe nada sobre as pessoas, nem sobre si próprio, nem sobre os outros: o que são, o que pensam, o que fazem, como nos veem."

A única coisa que temos em mãos e que conseguimos dar conta é a nossa existência.  O que os outros fazem , pensam, como nos veem, não nos pertence, mas nossa existência é nossa responsabilidade. Quanto mais independência e liberdade cultivarmos menos a vida nos parecerá opaca e não seremos destruídas por um "esbarrão". Seja ele qual for.




Compre o livro através do link

147 visualizações4 comentários

Posts recentes

Ver tudo

4 Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
patriciamilanis
patriciamilanis
Apr 12, 2023

Apenas ler o teu post já causa um impacto, imagino a experiência de leitura.

Sabe que é algo que já me peguei pensando algumas vezes, e realmente não é tão simples quanto parece ser...

Like
Replying to

Sim .. É uma leitura impactante mesmo e que nos convida a autorresponsabilidade. Quando estamos batalhando por nós mesmos fica mais difícil algo nos destruir por completo. Abala, sem dúvida, mas não desespera

Like

Fernanda Alcantara
Fernanda Alcantara
Mar 30, 2023

As histórias impactam muito, e não só por abordarem conflitos atuais, mas por nós fazer refletir em cada canto da nossa vida em conjunto. Devemos sim, ser independentes das vontades dos outros, o que não faz que sejamos antipáticas à essas. Um livro que deve ser lido e comentado.

Like
Replying to

Sem dúvida... para mim ele é um alerta. É uma leitura que com certeza farei com minhas filhas

Like
bottom of page