Iniciei a minha preparação para a subida à montanha mágica de Thomas Mann pela novela A morte em Veneza, já que há um paralelo entre as obras.
Foi durante a escrita de A morte em Veneza em 1912, que sua esposa Katia adoeceu e precisou ser internada em um sanatório para tuberculosos em Davos.
Mann foi visitá-la por 3 semanas e suas impressões do local deram-lhe a ideia para a escrita de outra obra que foi interrompida pela 1a Guerra Mundial e que viria a se tornar, futuramente, em A montanha mágica.
Mann também tinha a intenção, com a escrita de A montanha mágica, de escrever uma contraposição irônica à tragédia de A morte em Veneza.
A novela foi baseada em uma viagem real que Thomas Mann fez com seu irmão Heinrich e sua esposa Katia para Veneza em 1911, tendo sido escrita após o seu retorno para a Alemanha.
A contemplação do belo e o impacto que isso causa na alma do artista, esse foi um dos temas que mais me prenderam durante a leitura de A morte em Veneza.
Nela, Gustav Von Aschenbach (o protagonista), é um escritor de meia - idade, racionalista, metódico, que tinha seu "fazer artístico" mais como fruto de um esforço, de uma disciplina rígida, do que de uma inspiração .
Ele é um escritor muito mais ligado ao pensar do que ao sentir. A impressão que tive é que sua obra, que é reconhecida mundialmente, é muito bem trabalhada em termo de forma, mas sem nenhuma poesia.
Ele está em crise com seu ofício, se sente exaurido intelectualmente, cansado, sente falta de uma novidade, e decide caminhar por Munique para espairecer.
Depois de caminhar pela cidade, Aschenbach pára próximo a um cemitério para aguardar o bonde para retornar ao centro.
Ele observa um vulto saindo de uma capela mortuária e fica a observá-lo. O homem era ruivo, usava um chapéu de palha e tinha uma "aparência exótica de quem vinha de longe". Ele parecia possuir uma deformação congênita no rosto.
Aschenbach sentiu-se inquieto. Um impulso de fuga, que ele associou ao desejo de viajar, invadiu-lhe o espírito.
Essa é a primeira aparição tenebrosa que surgirá no caminho do protagonista como um prenúncio de morte, como já anuncia o título do livro.
Todas as figuras estranhas que aparecem no percurso do protagonista possuem características semelhantes e geralmente apresentam o elemento do chapéu de palha.
Todos eles também causam sentimentos de repugnância no protagonista.
O fato é que ele não tinha a intenção de viajar. Estava escrevendo "a obra da sua vida". A razão e a disciplina o impedia de se afastar do seu trabalho, mas não ignorava que o homem do cemitério lhe impeliu um desejo de ir para longe de sua própria obra.
Ele sentia que sua sensibilidade estava abalada, talvez pelo excesso de racionalidade. Apresentava uma rigidez e insatisfação consigo mesmo.
Estava profundamente entediado, então decidiu atender ao impulso provocado pelo andarilho do cemitério e partir para algum lugar para passar o verão.
Mas quem era o fatigado Gustav Von Aschenbach?
Aschenbach foi um menino doente. Há na novela uma associação entre doença e ímpeto artístico. Cresceu sozinho, sem amigos. Sua palavra favorita era "perseverar".
Desde cedo aprendeu a reprimir sentimentos próprios da juventude como ociosidade e leviana despreocupação. Acreditava ter a missão de escrever uma obra extraordinária e trabalhara incessantemente nisso.
Já é um escritor consagrado, autor de obras reconhecidas , quando embarca na sua viagem de "férias."
Há na novela indicativo de traços autobiográficos. Thomas Mann considerava a origem latina de sua mãe (que era brasileira) como a responsável por boa parte de seu talento e esse fato da sua origem o tornara um "estrangeiro ", uma vez que a sociedade alemã julgava como tal qualquer pessoa que não fosse um "alemão puro".
Assim também Aschenbach considerava que de sua mãe "derivaram os sinais de uma raça estranha" em sua aparência.
A combinação de uma férrea disciplina herdada do pai e a impulsividade herdada da mãe, davam origem ao artista que ele era.
"Uma dose de sangue mais ágil e mais quente fora injetada na geração anterior da família pela mãe do escritor, filha de um regente de orquestra, natural da Boêmia. Dela derivavam os sinais de uma raça estranha na aparência de Aschenbach. A combinação de uma prosaica consciência profissional e de enigmáticos impulsos fogosos dava origem a um artista e , precisamente, àquele artista inconfundível."
Thomas Mann dirá que Aschenbach é o herói de seu tempo. Ele é o escritor que, apesar do físico franzino e escassez de recursos, labuta quase à beira de um colapso e se mantém de pé a custa de muito esforço e à uma força mística de vontade e à aplicação hábil dos meios.
Como Aschenbach, havia muitos na Alemanha de Mann.
Aos quase 50 anos de idade, esse esforço artístico estava marcado na fisionomia de Aschenbach.
"Tinha - se a impressão de que vicissitudes impressionantes deviam ter passado por essa cabeça que geralmente se inclinava para o lado, numa atitude de sofrimento, e todavia fora a arte que ali se encarregara daquela modelagem fisionômica que em outros casos é realizada por um destino áspero, acidentado. "
O protagonista, enfim, viaja. Vai, primeiramente para um destino que não o agrada. Uma inquietação interior indicava que não era ainda aquele local que seu espírito buscava. Sentia falta de um sossego e um contato próximo com o mar. Decidiu, então, seguir para Veneza.
Há toda uma simbologia envolvendo o mar. O mar despertava em Aschenbach a propensão para o nada, para a ociosidade, para a parte de si mesmo que a vida toda tentou sufocar. Sua alma de artista ansiava por repousar junto à perfeição. O mar é esse "nada" que tem forma de perfeito.
"Adorava o mar por profundas razões: o anseio por sossego, bem natural num artista que muito trabalhava e, em face da exaustiva multiplicidade das visões, desejava achar um abrigo no seio da simplicidade desmesurada; a propensão ilícita, precisamente oposta às suas tarefas e por isso tentadora, para tudo quanto fosse desconformidade, monstruoso, eterno, a propensão para o nada. Repousar na proximidade da perfeição é o anelo de quem procura aprimorar a sua obra, e não é o nada uma das formas de perfeição?"
De acordo com o Dicionário de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, "entre os místicos, o mar simbolizava o mundo e o coração humano, enquanto lugar das paixões."
É para junto do mar que deseja seguir, ardentemente, o coração de Aschenbach.
Ele pega um barco para Veneza. No barco surge a 2a aparição tenebrosa. Um velho, também de chapéu de palha, fantasiado e maquiado para parecer jovem que penetra em um grupo de rapazes. Ninguém percebe que não trata-se de um jovem, só Aschenbach nota, e tem repugnância da figura.
A 3a aparição está na gôndola que , após chegar em Veneza, o leva para a ilha de Lido onde iria se hospedar no Grande Hotel des Bains. O gondoleiro é um trabalhador ilegal. Não costuma fazer esse trajeto. Ele tem uma fala enigmática e quando Aschenbach diz que não pagará pelo transporte, ele responde, como uma anunciação: "Você pagará. "
Essas aparições causavam em Aschenbach a sensação de que tudo estava diferente do habitual e que o mundo assumira feições estranhas e caricatas.
De fato, tudo estava fora da normalidade em Veneza que sofria com uma epidemia de cólera que tentava a todo custo esconder para não prejudicar o turismo local.
Aschenbach chega ao hotel. No saguão, ele se encanta com a beleza perfeita de um menino polonês de 14 anos de idade, Tadzio, que de tão belo é associado à imagem de uma escultura greco-romana, de Spinario.
Spinario é uma escultura de bronze, greco-romana, de um menino retirando um espinho do pé. Não se conhece a sua identidade, mas há uma versão de que ele seria um fiel mensageiro que entregou uma importante correspondência ao Senado romano e só após parou para retirar um espinho dolorido do pé. Por conta dessa versão, a escultura também é conhecida como Fedele (Fiel). Ela também representa a imagem de um corpo humano idealizado.
A beleza do menino o atinge como um raio. Ao admirar Tadzio na praia, ele tenta escrever um ensaio sobre ele. É esse outro modo de ser artista que ele tenta experimentar, mas em vão, porque ele descobre que a beleza não é descritível em palavras. O esforço foi tão grande que ele sente como se tivesse participado de inúmeras orgias.
Essa admiração violenta e puramente estética se transforma em uma obsessão, algo que Aschenbach não sabe muito bem como lidar, já que sempre levou uma vida apolínea, pautada no autodominínio e sobriedade (e que refletia também em sua arte), negando essa outra força vital que conduz à embriaguez dos sentidos.
Há nessa novela uma clara influência de Nietzsche, em especial dos conceitos do Apolíneo e Dionisíaco.
Em "A visão dionisíaca do mundo" , Nietzsche vai dizer que, no domínio da arte, Apolo e Dioniso são oposições de estilo em constante luta uma com a outra. Apolo representando a razão, autocontrole, moderação consciente e beleza harmoniosa e Dioniso representando a paixão, a embriaguez, o irracional, a falta de medida.
Em Gustav Von Aschenbach não há harmonia entre essas forças.
Sobre esses conceitos de Apolíneo e Dionisíaco, em breve teremos resenha aqui no blog sobre "O nascimento da tragédia ", primeira obra de Nietzsche e a qual ele aprofunda esse tema.
Veneza é o cenário ideal para Aschenbach. Ambos têm seus segredos. Veneza tentando esconder seus mortos pela cólera e Aschenbach, a sua paixão por Tadzio, até que ele perde completamente o controle de si.
Ele passa a perseguir o rapaz pelas ruas da cidade contaminada, na igreja, no hotel, em toda parte. Ele têm delírios com Tadzio correspondendo a seus olhares. Se deixa levar de tal forma que não se importa mais se os outros começarem a perceber e comentar sobre sua paixão.
Na tentativa de parecer mais jovem para Tadzio, tal o homem do barco, ele pinta o cabelo, maquia a face, e com essa nova aparência continua sua perseguição ao menino.
Ele , o homem comedido, que sempre teve medo do ridículo, se ridiculariza em nome dessa obsessão.
Aquela parte de si que tanto tentou sufocar, aflora com força impressionante.
Já próximo ao fim da novela, ele vive um dilema moral: ao descobrir sobre a epidemia que as autoridades tentavam ocultar, ele tinha três opções: a primeira era contar para a mãe de Tadzio o que estava acontecendo na cidade e aconselhá-la a partir imediatamente com seus filhos, mas isso levaria Tadzio para longe dele, a segunda era sair da cidade sem dizer nada a ninguém e a terceira era permanecer com sua contemplação distante da beleza do menino.
A primeira opção o restituiria ao seu eu anterior, comedido, sensato, mas não foi essa a sua escolha.
Assim como anunciavam as aparições tenebrosas, Aschenbach precisava acatar o seu destino e ele decide permanecer na cidade.
E o destino se cumpriu. Ele sucumbe não à peste que assolava Veneza, mas ao fato de não conseguir mais reprimir essa parte do seu eu.
Essa obra inspirou um filme de mesmo nome, dirigido pelo famoso diretor italiano Luchino Visconti e estreado em 1971. Gosto bastante desse diretor desde que assisti a adaptação de "Noites brancas" de Dostoievski.
Bem no início do filme, diante da beleza de Tadzio, Aschenbach relembra um diálogo que ele teve com seu amigo músico, Alfred. Esse diálogo, muito bem colocado no filme, resume a discussão sobre arte que Thomas Mann quis apresentar no seu livro .
Relembrando os conceitos de Nietzsche, é como se Aschenbach, que na vida e na arte sempre valorizou o lado apolíneo, conversasse consigo mesmo, com o lado dionisíaco do seu eu que ele tanto procurou negar e não com outra pessoa (minha sensação).
Vou transcrever o diálogo abaixo:
"- Beleza. Quer dizer, o "seu" conceito espiritual de beleza.
- Mas você nega a habilidade do artista em criar a partir do espírito?
- Sim, Gustav, é exatamente o que eu nego.
- Então, a seu ver, nosso trabalho, como artista, é...
- Trabalho, exatamente!
- Você realmente acredita que a beleza possa ser fruto do trabalho?
- Sim, acredito.
- É assim que nasce a beleza. Assim. Espontaneamente, indiferente ao seu trabalho e ao meu.
- Ela preexiste à nossa presunção de artistas.
- Seu grande equívoco, meu caro amigo, é considerar a vida, a realidade como uma limitação.
- E ela não consiste nisso? A realidade apenas nos distrai e degrada.
- Sabe, as vezes penso que os artistas mais se parecem caçadores que miram no escuro. Nem sabem qual é o seu alvo, tampouco se o atingiram. Mas não se pode esperar que a vida ilumine o alvo e estabilize sua mira. A criação da beleza e da pureza é um ato espiritual.
- Não, Gustav, não. A beleza pertence aos sentidos. Somente aos sentidos.
- Não é possível alcançar o espírito através dos sentidos. Não é possível. É somente através do absoluto controle dos sentidos que se pode, algum dia, alcançar sabedoria , verdade e dignidade humana.
- Sabedoria? Dignidade humana? Para quê servem? O gênio é uma dádiva divina. Não! Uma aflição divina. Uma chama breve e pecaminosa de dons naturais.
- Rejeito as virtudes demoníacas da arte.
- E isso é um erro!
- O mal é necessário. É o alimento da genialidade.
- Sabe, Alfred, a arte é a fonte mais elevada de educação e o artista tem que ser exemplar. Deve ser um modelo de equilíbrio e força. Ele não pode ser ambíguo.
- Mas a arte é ambígua."
E para finalizar, deixarei abaixo uma passagem do filme que resume todo o dilema de Gustav Von Aschenbach:
"Você atingiu o perfeito equilíbrio. Homem e artista são um só. Chegaram juntos ao fundo do poço."
Ótima resenha Naty 👏👏