"Ele me arrancava da minha geração, mas eu não pertencia à dele."
O amor não raciocina cronologicamente. O desejo também não. O passar dos anos nem sempre é diretamente proporcional às experiências vividas.
(Pausa para uma pequena digressão)
Um jovem pode ser um elemento iniciador para uma mulher madura. Pode trazer o inédito, o inaugural, mesmo para quem já está na segunda metade da vida.
Nessa história, Annie Ernaux conta a sua aventura amorosa com um rapaz 30 anos mais jovem (na época, ela estava com 54 anos) e a teia do enredo nos leva a refletir sobre amor, desejo, gênero, etarismo e o peso das convenções estabelecidas socialmente.
Mulher madura com um jovem rapaz é, para muitos, um atentado à ordem natural das coisas. É não só antinatural, mas até mesmo imoral.
"O que as pessoas viam não éramos nós, e, sim, de modo confuso, o incesto."
Isso porque o nosso olhar (e não apenas o dos homens) só foi treinado para enxergar beleza na juventude. É de se espantar que uma mulher que já passou dos 50 ainda seja desejável.
É de se espantar, inclusive, que ela ainda deseje também.
O fato é que a mulher possui um prazo de validade estabelecido biologicamente. Uma mulher que não pode mais conceber, por exemplo, é desvalorizada socialmente. O corpo feminino não é visto como fonte de prazer para a própria mulher. O corpo feminino possui uma função, a de gestar, e isso também determina seu valor.
Schopenhauer que o diga que via o amor como armadilha do instinto sexual. O amor, dizia o filósofo, só interessa à reprodução da espécie e se Schopenhauer tinha razão e o amor pressupõe a procriação, não há espaço para o amor na maturidade.
Annie não se abalava com isso. Na juventude, a arrogância pode até vir do fato de se ter um corpo atraente e um útero que funcione , mas na maturidade existe uma soberba diferente: Annie se sentia superior ao jovem A. por ele ter pouca idade, não ter vivido o suficiente e não ser independente financeiramente como ela.
O que ela só percebeu anos mais tarde é que, se ela acumulava vivências que fabricaram suas memorias, A. possuía tempo.
"Ao lado dele, minha memória parecia infinita. Essa espessura de tempo que nos separava era de uma grande delicadeza e dava mais intensidade ao presente. Não me ocorria o pensamento de que essa minha longa memória do tempo de antes do nascimento dele fosse o par, a imagem inversa, da memória que ele teria depois da minha morte, com eventos e personagens políticos que eu nunca terei conhecido."
Enquanto a flecha do tempo em forma de memória de Annie apontava para o passado, a fecha do tempo de A. mirava para o futuro.
Memória e tempo ditam o tom da narrativa confessional da autora.
Eles estão presentes nas canções que Annie escuta com A. e que a faziam reviver acontecimentos do passado, como um aborto clandestino que fizera quando jovem, nos olhares sedutores das moças para A. na presença de Annie como quem diz: eu sou jovem e, portanto bela. Você não é páreo para mim (lembrei da fábula da sororidade), nas expressões joviais que A. usava ao falar, como "stop", e no seu jeito livre e descompromissado com a vida.
O tempo, nessa perspectiva de futuro, também se revelava no desejo de A. de ter um filho, algo que Annie, com os seus já "criados", não podia realizar de forma direta (necessitaria de uma doação de óvulos) e nem, sequer, desejava.
"Ele queria ter um filho comigo. Esse desejo me perturbava e me dava o sentimento de uma injustiça profunda por estar em plena forma física, mas não poder mais conceber. Era espantoso saber que, graças à ciência, agora era possível engravidar depois da menopausa, com o óvulo de outra mulher. Mas eu não tinha nenhuma vontade de tentar o procedimento que meu ginecologista tinha proposto. Apenas me divertia com a ideia de uma nova maternidade, algo que, depois do nascimento do meu segundo filho, aos vinte e oito anos, eu nunca mais tinha desejado."
A verdade é que, entre passado e futuro, para quem já passou dos 40 , o presente basta.
🎧 Para ouvir...
Annie cita algumas referências musicais em seu processo de rememoração. Liguei a alexa (quanta modernidade para uma pessoa da geração walkman) e ouvi as músicas, sentada no chão da sala do meu apartamento com um copo de Heineken na mão.
Através delas, lembrei dos meus próprios acontecimentos e curti a sensação de que amando, desejando, de vez em quando sendo amada também, a vida não tem passado despercebida por esse corpo de quase 47 anos.
(ainda não senti necessidade de ter um quadro no sótão).
Existe uma pressão estética sobre a mulher, é inegável, mas o fato é que há beleza bastante nessa fase da vida também.
🍺 Pega uma bebida (ou não, se preferir) e liga o som:
1. Don't Make Me Over de Nancy Holloway (ouvi no YouTube);
2. She Lives on Love Street na voz de Jim Morrison (Spotify);
3. Como já estava no clima, ouvi a playlist do The Doors , as melhores - também no Spotify.
Se curtiu essa resenha, não deixe de ler o texto sobre "A paixão simples" aqui.
Parabéns pela resenha Naty 👏🏼👏🏼
Continuo sem ter lido nada dessa autora hahah, mas do ano que vem não passa.
Amei