top of page

A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes (Dostoievski)

Foto do escritor: A leitora ClássicaA leitora Clássica

A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes , escrita em 1859, foi trabalhada por Dostoievski em um período de 2 anos,  com uma interrupção no meio do caminho para a escrita de "Um sonho do Titio" (que já tem resenha aqui no blog).


Em carta a seu irmão Mikhail, escrita em 09 de maio de 1859, Dostoievski dirá o seguinte :


" Essa história tem, sem dúvida alguma, muitas falhas e é, sobretudo longa demais. Mas estou perfeitamente seguro de que tem grandes méritos e é meu melhor trabalho. Comecei a escrevê-la há dois anos (com uma interrupção no meio, quando escrevi "O sonho do Tio"). O começo e o meio estão decentemente trabalhos, mas o final foi escrito apressadamente. Ainda assim, coloquei nela toda a minha alma, minha carne e meu sangue. (...) Nesse romance construí minha maiores esperanças e, mais que isso, a certeza de minha vocação literária. "

Por essa fala do próprio Dostô, percebemos que "A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes", um livro de memórias (Das memórias de um desconhecido), não é um livro qualquer no conjunto da obra do autor.



O desconhecido, na verdade trata-se de Serguei Aleksándrovirch, sobrinho do Coronel Iegor Ilitch Rostániev , o Titio. É ele quem nos conta a história de seu tio, que após enviuvar, vai morar com os filhos em sua propriedade em Stepántchikovo,  propriedade que havia adquirido através de herança.


O Titio era um homem bom , de coração puro e nobre, mas extremamente passivo.


Sua mãe, que já era viúva, casou-se com o General Krakhótkin, se tornando assim "Generala". Ela era uma mulher tirana e chantagista, vivia às custas do filho mesmo após casada com o General e para ter seus desejos sempre satisfeitos, cultivava nele (Titio)  um sentimento de menos valia, culpa e uma imagem distorcida de si.


Seu marido, o General, não era muito diferente. Era temperamental, desprezava a todos, ria e debochava das pessoas (em especial da própria esposa) , se dizia um livre  - pensador, amante da alta filosofia e era ateu.


Através da morte do General, Dostoievski vai lançar um olhar para essa questão da fé. Na hora de sua morte, o seu ateísmo não se sustentou. Pediu perdão, mandou chamar padres e até recebeu a extrema unção.


Mas o fato é que esse General começou a perder a visão e precisou de alguém que fizesse leituras para ele.


É aqui que entra a personagem principal do livro, o anti - herói, Fomá Fomitch Opískin que se tornou leitor do General.


A descrição minuciosa de Fomá Fomitch revela o quanto Dostoievski entendia do ser humano e suas relações.


Fomá era um agregado da casa do General. Essa figura do agregado  é bem característica do período. O agregado, que era um homem pobre e livre (não era nem escravo nem servo, mas sem nenhuma relevância social) , também foi explorada na literatura brasileira do Século XIX através das obras de Machado de Assis.


Em pouco tempo, Fomá adquiriu uma impressionante influência sobre todos da casa, especialmente em relação às mulheres.


A Generala o adorava. Tinha por ele uma "adoração mística."


Ele ficou ao lado do General até a sua morte,  ouvindo desaforos, aguentando um verdadeiro martírio,  mas lucrava bastante com isso. Ganhava,  principalmente,  prestígio perante os outros moradores, agregados e trabalhadores da casa.


Após a morte do General, o Titio convida a mãe para morar com ele em Stepántchikovo e ela chega à aldeia com a sua multidão de  agregados, incluindo Fomá Fomitch.


Forma-se , então, um trio bastante interessante em termos de análise psicológica: uma mãe tirana e manipuladora,  um filho dependente e submisso e um agregado narcisista.


Antes de dar continuidade ao enredo, é importante falar um pouco de cada um deles porque são três tipos psicológicos que,  na minha opinião, foram muito bem construídos por Dostoievski e conhecê-los dará um sentido maior a toda a história.


Confesso que o elemento psicológico é o que mais me atrai na obra do autor, mais que seu aspecto social, político, religioso,  etc.


Vamos à eles:


Mãe (Generala) : Como já falei anteriormente,  a Generala era uma mulher tirana e manipuladora. Não só dizia para o filho o quanto ele era egoísta e cruel (sendo que ele não fazia absolutamente nada ) , como também era essa a imagem que ela fazia com que os outros tivessem dele.


Achava-se muito importante,  mas esse "prestígio " era gozado apenas de modo doméstico, restrito à sua falida propriedade.


Para afetar o filho, fingia até mesmo doença e mal estar,  mas assim que conseguia o que queria, ficava boa de uma hora para outra.


O filho, por sua vez, a considerava uma grande dama e se sentia um inútil, egoísta e insignificante perante ela e se a "bondosa" senhora se zangava, ele assumia prontamente a culpa sabe-se lá de quê. E ela tinha duas formas de demonstrar sua irritação: a silenciosa,  o típico comportamento passivo - agressivo,  que uso o silêncio para ferir e a eloquente,  onde o vitimismo chega à níveis abissais.


O filho (Titio) : O narrador dirá que o Titio era extremamente bondoso,  delicado, refinado. Sua alma era pura como a de uma criança. Não conseguia ver maldade no mundo nem nas pessoas e culpava a si mesmo pelas falhas dos outros. Era ingênuo e idealista (achava que vivia em um mundo ideal onde todos são anjos). A idealização é típica da personalidade dependente. Sempre submisso, passivo. Ele também tinha uma característica que é bastante comum em pessoas dependentes : o perfil do salvador,  de achar que pode "salvar" ou "curar" as feridas alheias e reconciliar os ofendidos e humilhados com a humanidade.


Para Dostoievski,  a questão do autosacrifício é fundamental. Ele irá trabalhar isso em outras obras, como por exemplo , em Crime e castigo.


O autosacrifício está presente nessa obra na figura do Titio. Dostoievski irá pintá-lo como o extremo da bondade e pureza, mas não acho que a bondade seja justificativa para alguém se deixar tiranizar. 


O agregado (Fomá Fomitch): Aqui entra em cena a personalidade mais complexa de todas. Fomá é o que hoje denominaríamos de pessoa com transtorno de personalidade narcisista.  Fomá  é aquele tipo de pessoa que durante toda a sua vida foi maltratado, menosprezado, diminuído, agredido, e como é comum acontecer com uma pessoa que é oprimida, se torna também um opressor.


Fomá, assim como Titio, também tinha uma autoimagem deturpada.  Enquanto o Titio não conseguia enxergar as suas qualidades , Fomá ressaltava as que não tinha ao nível do absurdo.


O narrador dirá que ele tinha um amor próprio tão exarcerbado e injustificado que era um tipo de amor próprio doentio, ofendido e invejoso , reprimido pelos fracassos do passado.


Tinha sede de elogios  e da admiração alheia. Se os elogios não vinham de fora, ele acabava elogiando a si mesmo. Queria ser sempre o centro das atenções e se fazia de ofendido quando isso não acontecia.


Ele tinha um senso de superioridade e uma visão de si tão inflada que julgava  ter uma grande missão na vida : se tornar um escritor reconhecido em toda Rússia.


Se achava o mais sábio de todos,  um erudito.


Lembrei - me também da teoria de  Alfred Adler, a psicologia individual. Adler foi quem descreveu na literatura os complexos de superioridade e inferioridade. Ele dirá que o complexo de superioridade, na verdade, esconde um grande sentimento de inferioridade. E era exatamente isso que acontecia com Fomá. Quanto mais insignificante e medíocre se revelavam suas origens, mais ele elevava a própria importância.


Fomá era , na verdade um bufão, um fanfarrão,  que através da eloquência e de um ar de autoridade,  procurava seduzir as pessoas para delas tirar vantagens.


Lembrei-me bastante, também,  do nosso amigo Castelo do conto de Lima Barreto,  "O homem que sabia javanês" (também já tem resenha aqui).


Foi assim, "falando javanês" (se passava por erudito, mas não era erudito coisa nenhuma), que Fomá se tornou o verdadeiro senhor de Stepántchikovo, sendo visto dessa forma por todos, inclusive os camponeses da propriedade. Titio o obedecia cegamente.


Imaginem agora uma personalidade acostumada a se submeter, frágil em seu amadurecimento, que acha que a pessoa sofredora merece ser poupada,  que acredita ser sua vocação se sacrificar pelos outros, aliada a uma pessoa despótica, narcisista e com zero grau de empatia ?  É o "casamento " perfeito.


E é a ligação dessas duas personalidades, e suas consequências, que será a parte central da obra.



O narrador vai nos contar que estava morando em Petersburgo e foi chamado por seu Tio para ir para Stepántchikovo afim de que ele casasse com a preceptora de seus filhos. O narrador fica sabendo por um antigo amigo de seu tio sobre a influência exercida no local por Fomá e Generala e decide, heroicamente,  libertar seu tio do jugo desses dois aproveitadores hipócritas.


No caminho para Stepántchikovo, o narrador conhece um Senhor, amigo de seu tio , que estava vindo justamente da sua propriedade e antecipa algumas coisas que estão acontecendo no local.


Ele, o Senhor Bakhtchêiev, conta a Serguei Aleksándrovirch (o narrador) o quanto Fomá é desprezível , falso moralista, vitimista e ninguém enxerga isso.


Quando os dois estão conversando chega um mujique de uma das propriedades do Coronel e conta aos dois que o Titio iria doar toda a propriedade de Kapitónovka com todas as almas (servos) para Fomá Fomitch,  fazendo-o sair da posição de agregado para senhor de terras.


O Coronel (Titio), como falei na sua descrição no início do texto, é uma pessoa com personalidade bondosa, pura, mas também passiva, idealista e "salvadora" . Ele acredita que tomando essa atitude de fazer Fomá subir na esfera social iria apagar todo o seu passado de insignificância, restituindo-lhe a dignidade.


O problema é que pessoas como Fomá, além de não terem capacidade de reconhecer a bondade no outro, se tornam cada vez mais tiranas ao perceberem a passividade de suas vítimas.


Pessoas como Fomá procuram mostrar poder sobre os outros. Na narrativa, esse "poder" de Fomá é descrito de várias formas, mas algo que o Senhor Bakhtchêiev diz para o narrador, e que ele mesmo pôde comprovar ao chegar na propriedade, é que Fomá estaria ensinando francês para os servos.


O Senhor Bakhtchêiev não entende para quê os servos ou mesmo os russos deveriam aprender francês, mas o que Fomá pretende com isso é demonstrar autoridade e poder sobre essas pessoas, além de ser uma crítica de Dostoievski aos chamados continentalistas como já vimos na resenha de "O sonho do Titio".


Outra informação importante que o Senhor Bakhtchêiev dá a Serguei é que o Coronel está apaixonado, mas que não ousa enfrentar Fomá e a Generala , pois ambos não aceitam a moça por ser pobre.


Serguei acredita ser pela preceptora que lhe foi oferecida como esposa e fica em dúvida de qual decisão tomar ao chegar em Stepántchikovo.


O narrador chega à aldeia e na hora do chá conhece seus habitantes. Uma cosia curiosa que ele dirá é que , quando da sua entrada um tanto desastrosa, Fomá Fomitch não estava presente, mas a sua ausência era mais gritante até mesmo que sua presença.


É "como se ele tivesse levado consigo toda a luz do cômodo" . Essa percepção do narrador deixa claro o nível de influência que Fomá exercia no local.


O fato é que o narrador conhece Fomá Fomitch e pôde constatar que o Titio não era respeitado ou considerado nem mesmo dentro da própria casa.


Ele pôde constatar, também, que realmente o Titio estava apaixonado pela preceptora Nástienka, mas estava disposto a abrir mão da própria felicidade para não desapontar sua mãe, a Generala, e o agregado Fomá Fomitch que gostaria que ele casasse com uma moça rica de nome Tatiana Ivánovna.


Tatiana, que de acordo com o narrador, é a grande heroína do romance, é uma espécie de contraponto de Fomá,  uma vez que ela também foi humilhada a vida inteira, desprezada, oprimida, mas manteve seu coração doce e uma sensibilidade incomum.


Mesmo passando pelas mesmas privações que o agregado (ela também era uma excluída da sociedade e enriqueceu quando, já adulta, recebeu uma herança inesperada), não se tornou uma opressora. É como se ela fosse o seu duplo. Dostoievski irá trabalhar bastante com essa concepção do duplo e não apenas como um duplo "fantástico " como ele apresenta no livro "O duplo " (e que também tem resenha aqui no blog), mas um personagem como sendo o duplo do outro. É o que ele faz nessa obra com Tatiana Ivánovna e Fomá Fomitch.


Por isso, na minha opinião, fica difícil colocar os comportamentos negativos de Fomá Fomitch integralmente na conta das circunstâncias de vida e na sociedade que o tratou indignamente.


Na segunda e última parte, teremos todo o desenrolar da história amorosa do Titio com Nástienka e como tudo, finalmente,  se resolveu, mas gostaria de passar direto para o final (que muitos julgam ter sido feliz), mas que para mim esconde uma tragédia.


Titio e Nástienka acabam casando com a "benção" de Fomá Fomitch.  O agregado, ao ofender publicamente a preceptora, despertou uma grande fúria em Titio que o expulsou de sua residência.


Fomá, ao perceber que o ponto fraco de Titio é Nástienka,  simula uma situação onde aparenta que foi ele quem aproximou Titio e a preceptora, "fazendo a alegria de todos", sendo que foi ele quem causou toda a confusão.


Nástienka foi quem, indiretamente, colocou um freio nas tiranias de Fomá.


Mas o trágico reside no fato de que todos daquele local , inclusive e principalmente Titio, jamais perceberam que estavam sendo tiranizados. Não reconheceram em Fomá um opressor que ele, de fato, era. Tanto que até mesmo seus inimigos declarados passaram a admirá-lo.


Toda a experiência adquirida com o contato com essa personalidade destrutiva não serviu para levá-los a uma amplitude de consciência.


Titio permaneceu o mesmo do início ao fim. Não é que ele deveria abrir mão do seu coração bondoso, mas não perceber o quanto foi explorado durante todo esse tempo,  abre espaço para que outros Fomás apareçam e que um novo ciclo de opressão se inicie.


Achei triste e trágico,  pois no fim das contas,  todos se curvaram ao tirano. Não vejo felicidade nisso.


No livro "O estilo de Dostoievski ", Nikolai Tchirkóv disse que a inspiração de Dostoievski para a criação de Fomá Fomitch  foi o Tartufo de Molière, então muito em breve teremos essa resenha por aqui.


73 visualizações2 comentários

Posts recentes

Ver tudo

2 komentarze

Oceniono na 0 z 5 gwiazdek.
Nie ma jeszcze ocen

Oceń
patriciamilanis
patriciamilanis
18 cze 2024

Amando as resenhas dos livros do Dostoievski Naty... a cada leitura sinto mais vontade de ler os livros dele em ordem cronológica hahah 😄

Polub
Odpowiada osobie:

Hahahaha vale muito a pena essa experiência de leitura, Paty. Até pq os temas do Dostoievski são bem recorrentes. Já o vemos esboços de seus personagens mais marcantes e complexos já nas primeiras obras

Polub
bottom of page